Este conto de minha autoria foi vencedor do Concurso Nacional “Escreva Pela Paz”, promovido pelo Yazigi Internacional-Internexus, 1998. Na ocasião, fiquei muito feliz, principalmente pelo prêmio, que foi uma viagem de 15 dias a Nova Iorque .
Pela fresta da janela
Já não mais ousava falar de sua estranha experiência de vida. Tornara-se cada vez mais isolado, solitário, como se a cada dia se estreitasse um pouco a já reduzida janela interior em que se debruçava para manter contato com o mundo. E, no entanto, como ansiava por esse contato! Chegou a acreditar que para permanecer vivo tinha mais necessidade de gente do que de ar. Mas a janela não passava agora de uma fresta, que o sufocava.
Não fora sempre assim. As lembranças da infância eram alegres, comuns às de um garoto esperto, bem amado pela família financeiramente estável. Boa educação, aliada à natural inteligência, o tinha preparado para a vida. Mas agora reconhecia que o pesadelo era antigo, começara nesse tempo em que a vida deveria resumir-se a risonhas inconsequências.
Enquanto os outros garotos não perdiam filme ou seriado de guerra simplesmente pelo prazer da aventura, ele sempre saía do cinema com a cabeça fervilhando e a alma se debatendo entre sentimentos de tristeza pelos males que as batalhas de mentirinha faziam desfilar na tela e de revolta contra o mundo – que gerava o terrível monstro – e contra si próprio – incapaz de degolar o monstro ou sequer arranhá-lo.
Bem que tentara falar com o pai, o padre, a professora e os colegas mais chegados. Mas ninguém o levara muito a sério. Por falta de tempo ou de interesse naquele garoto chato, sempre com um único assunto, cada um lhe dava uma resposta evasiva ou malcriada: ‘‘A vida é assim mesmo’’, ‘‘Guerra existe desde que o mundo é mundo’’ e ‘‘Vê se não enche’’, eram as mais comuns.
Mas ele não se conformava nem entendia a guerra. Vivia cercado de paz, porém não esquecia a luta. Como não encontrava ninguém para falar, passou a pensar. Fechava-se na própria concha, como dizia sua preocupada mãe. Tornou-se a cada dia mais introvertido, não tanto que o impedisse de estudar – principalmente ler e pesquisar a história das guerras – e se formar.
Entre a formatura e o início da vida profissional e adulta, passara um período quase normal, voltado para os temas prosaicos das pessoas comuns. Graças aos bons conhecimentos do pai e à sua própria capacidade, conseguira lugar de redator em um grande jornal, onde sua estrela começara a brilhar. Não fora difícil encontrar, apaixonar-se e casar-se com a bela jovem de longos cabelos negros, dando início à estável relação de toda uma vida. Mas, mesmo nesses tempos de calmaria, o assunto não lhe saía da cabeça.
Sabia tudo sobre as guerras que devastavam o mundo. Cada luta, cada grito de dor, a destruição, os mortos, os feridos, as viúvas, os órfãos. Sua produção profissional e suas incursões literárias eram brilhantes quando o tema era guerra. Tanto que chamou a atenção de colegas e chefes. Elogiado, estimulado, foi-se aprofundando cada vez mais, até tornar-se um “arquivo ambulante” sobre o assunto, como brincavam os jornalistas.
Foi quando os problemas realmente começaram. A pessoa afável, quase tímida que era, passou a dar lugar a um profissional fechado, voltado apenas para si e suas preocupações. Respostas duras substituíram atitudes normalmente gentis e poucos ousavam dirigir-lhe a palavra, temendo interromper suas pesquisas e pensamentos. Também em casa o ambiente transformava-se.
A morena de longos cabelos, que lhe dera dois filhos saudáveis e que era feliz em uma casa confortável ao lado do marido inteligente e famoso, já não sorria com facilidade. Procurava conformar-se com a idéia de que a profissão exigia dedicação completa do companheiro, mas logo teve que abandonar esse pensamento ao qual se agarrava como salvação: ele estava cada vez mais distante e agressivo, nem pai nem amante. Era um homem em guerra permanente contra o mundo.
Esquecido de si, da família, dos amigos e da realidade, mergulhara inteiramente nos horrores das guerras, na revolta contra a demência dos homens que as manipulam e na sua impotência para impedi-las. Era capaz de adivinhar sentimentos, pensamentos e emoções de soldados, comandantes e vítimas de todas as guerras do mundo, desde os primeiros homens pré-históricos que se matavam em nome da sobrevivência.
Conhecia motivos e desculpas de todas as lutas. Descobrira interesses inconfessáveis por trás das batalhas e tornara-se cada vez mais contundente em suas críticas. Como correspondente de guerra, sentira na própria pele os horrores dos tiros, das bombas e das explosões, vira mutilação, morte e degradação do ser humano. Por sua experiência e conhecimento da violência, fora destacado para as grandes reportagens sobre marginalidade e violência urbana, suas terríveis causas e consequências.
Não poderia mais lembrar-se de todos os prêmios e reconhecimento ao seu trabalho, tantos haviam sido ao longo da carreira. Alcançara seu objetivo de denunciar a violência, fora capaz de arranhar o monstro, mas não conhecera a sua própria paz. Sentado à mesa de trabalho, redigia indignado artigo enumerando todos os motivos pelos quais a humanidade se oprime e se mata: cobiça, poder, miséria, riqueza, ódio, paixão e até crença religiosa. Encontrou uma frase de efeito para o encerramento – ‘‘O homem mata até em nome de Deus!’’ – e gostou.
Não sorriu, porque há muito não sabia fazê-lo. E também porque não sentia mais o prazer do grito contra a violência ou mesmo do trabalho bem feito. Só o vazio, o isolamento, a sensação da própria vida desperdiçada. Nada mudara. Havia guerras e havia violência.
Sentia agora uma incontrolável necessidade de falar com os colegas, de ter amigos, de passar a mão nos negros cabelos da mulher, de ouvir e entender o que os filhos lhe queriam contar. Mas chegara a um ponto de onde era impossível retroceder. Pela fresta da janela passava agora somente um filete de luz.
Olhou à volta e viu-se, como sempre, isolado em meio à redação. Havia um respeitoso espaço entre ele e os outros, da maneira como gostava, para evitar ser perturbado em seu trabalho. Alguns o observavam furtivamente, entre admirados e temerosos de suas irascíveis reações. Aliás, sentia que não ia demorar para acontecer. Sua vontade era levantar-se e gritar por socorro, pedir que falassem com ele, lhe estendessem a mão, o ouvissem. Mas sabia que não conseguiria. Ao invés disso, ia fazer qualquer mal-humorada e hostil observação sobre a humanidade e “quem não tem mais nada o que fazer a não ser ficar olhando para os outros”.
Chegou a levantar-se, mas parou fascinado pelo sorriso de uma jovem colega que dele se aproximava com naturalidade. Não havia medo nem ironia em seu rosto cordial. Incrédulo, constatou que o sorriso era mesmo dirigido a ele e foi logo completado por frases diretas: “Tenho que lhe dizer como acho seu trabalho importante. Com seu estilo de denúncia, é mais eficaz do que cem comitês de paz juntos”.
A moça seguiu seu caminho, não sem antes lhe dar um novo sorriso, que ele, quando percebeu, já havia retribuído. Olhou para os espantados rostos à volta e sentiu que podia ampliar o sorriso até chegar a um comovente, simples e sincero “Até amanhã!”. Não sabia bem por quê, mas quando pegou o casaco de cima da mesa e encaminhou-se para o elevador, parecia ter de volta sua própria vida. Por pouco não ensaiou um assobio.
Já na rua, contra todos os seus hábitos, teve tempo suficiente para uma longa caminhada sob o tímido sol de primavera. Na banca de jornais, em destaque, seu mais recente trabalho, junto com a notícia de que seria debatido em reunião de governantes dispostos a evitar mais uma guerra. Sorriu novamente e percebeu como era fácil fazê-lo. Apressou o passo, querendo encurtar o tempo para chegar em casa. Ia passar a mão nos longos cabelos da mulher. Já não eram tão negros, teria que soltar os pentes que há muito os prendiam, mas sabia que seria tão bom quanto antes. Nem percebeu quando pombas brancas voaram em direção às árvores, buscando abrigo para passar a noite.