Publicada na Tribuna Livre de A Tribuna em 03/02/2024
Cabrocha mentirosa
Felizmente, ele desabafa em um samba
e não vai atrás da cabrocha para se vingar. Nem facada nem tiro. Nenhum
feminicídio. O som dos surdos e tamborins abafa seu lamento e as luzes e cores,
aliadas ao brilho das fantasias de cetim, transformam a avenida em um
espetáculo magnífico, aplaudido pelas arquibancadas e, via tecnologia, por todo
o País e por muitos cantos do Planeta.
Assim é a vida. Há o som dos bumbos e
surdos e há o som das bombas caindo sobre populações inocentes em guerras intermináveis
e injustificáveis, ainda que os senhores da guerra tentem justificá-las. Há crianças
desfilando na avenida, em ricas fantasias e com todas as restrições e cuidados
devidos à sua faixa etária, e há os meninos em roupas cinzas como eles, tentando
se infiltrar na área do desfile para poder ver um pouco daquele deslumbramento
e sonhar com uma vida colorida, menos miserável.
Há as belíssimas mulheres sambando no
asfalto ou nos carros alegóricos, exibindo corpos perfeitos, resultado de altos
investimentos na indústria de cosméticos, e há as mulheres da limpeza, em seus
uniformes de gari, garantindo a subsistência de suas famílias, mas nem por isso
deixando de se divertir e sambar no ritmo das escolas.
Há os policiais, bombeiros, médicos e
enfermeiros em seu árduo trabalho de garantir a ordem e defender a saúde e a
vida humanas, e há os que assaltam, roubam, matam e estupram sem jamais se
preocuparem com a desgraça e o sofrimento que causam.
Assim é a vida! É feita de extremos,
de paradoxos, de alegrias, euforia e, também, de profunda tristeza, decepção e
desistência. Reflexo do ser humano, transitando entre o bem e o mal. Poderia
ser diferente se houvesse um olhar mais suave para o outro. Se o que muitos
chamam de espiritualidade, outros de caráter, prevalecesse.
O rol de maldades é infindável; o materialismo
e o imediatismo predominam e o individualismo não deixa espaço à solidariedade
e ao socorro. O sofrimento causado por gestores do bem público corruptos e
incapazes é, muitas vezes, fatal. Os ilusionistas do viver estimulam o vazio,
gerando seguidores fanáticos, sem raciocínio, resultando em uma população sem
cultura, presa fácil dos falsos “experts”. Assim é a vida! Que poderia ser
melhor se pensássemos mais e nos pavoneássemos menos.
Mas chegou o Carnaval! Tempo pouco
propício à reflexão porque o que predomina é a fantasia. Física ou psicológica.
É tempo de esquecer as mazelas e se divertir. É tempo de rir e não de chorar,
como o sambista de “Retalhos de Cetim”. Quem sabe a cabrocha não foi desfilar
preocupada em deixar os filhos na casa ameaçada pela enxurrada, já que as obras
que deveriam contê-la foram paralisadas pelos gestores públicos. Quem sabe ela
também chorou por não poder ir para a avenida e por decepcionar o sambista, seu
grande amor!