domingo, 10 de setembro de 2023

João Vitor - 12 anos

 

                      Tênis “da hora”

 

Há alguns anos, nesta época, nós procurávamos jogos de montar, quebra-cabeças, cartas de Pokémon e carrinhos que fizessem seus olhos brilhar ao abrir os papeis coloridos que os embrulhavam. Antes, ainda, buscávamos brinquedos muito coloridos e cheios de movimentos que fizessem você esticar suas impacientes mãozinhas de bebê para pegá-los e brincar com eles.

Ao se aproximar a data de seu aniversário, havia confabulações em família sobre o que lhe dar de presente, que fizesse você feliz. Não se passaram tantos anos assim, e, agora, você prefere um tênis “da hora” de presente de aniversário. E, aos 12 anos, já exímio na web, até manda link para a vovó com sugestão do que você gostaria de ganhar. Meu netinho João Vitor não é mais um lindo bebê nem um menino esperto e inteligente. As qualidades continuam as mesmas, mas a adolescência se aproxima.

Na escola, aumentaram as responsabilidades quanto a horários, livros e material didático. Você já se adaptou às obrigações escolares e a um número maior de professores, para as várias matérias do currículo. É uma nova fase, onde as festas de aniversário da turma transferiram-se dos bufês com animadores, docinhos e músicas infantis, para quadras esportivas, onde a agitação pode ser exteriorizada à vontade.

Um dia, seu irmão reclamou: “Você não gosta de coisas de criança!” E você, na hora: “Claro, Tite, eu gosto de coisas de pré-adolescente!” Você vive essa fase de pré-adolescência, mas não muda sua personalidade amorosa e emotiva. A família continua sendo sua base, seu esteio. Papai e mamãe, além de companheiros, são os guias do caminho, orientando, cobrando e oferecendo muito amor. Seu irmão Luiz Felipe permanece o companheiro de “brigas” e brincadeiras, uma união que vai acompanhá-los pela vida. E seus avós continuam amando profundamente você e Tite, vibrando a cada conquista, a cada novo degrau alcançado.

Por ser o mais velho, muitas vezes você age de maneira protetora com seu irmão, tanto que nas fotos está sempre com o braço por cima dos ombros do Tite. Em sua casa, quando a vovó Ana foi ficar com vocês, demonstrou responsabilidade, ajudando a arrumar a mesa para o café da manhã e indo buscar as coisas nas gavetas e armários. E até fez o prato do Tite! Na rua, caminhando, tem preocupação em não deixá-lo se afastar muito. Coisas de irmão mais velho!... 

Quando, em família, você passa a ser objeto da conversa, fica encabulado: um dia, vovô Paulo provocou, perguntando das namoradas, e você ficou sem jeito. Mas a mamãe denunciou: “Ih, ficou vermelho!” E como seu lado criança ainda prevalece, não tem uma refeição em que você, sentado ao lado do vovô Paulo, não o provoque com risos e cutucadas.

  Mas você também gosta de proteção, atenção, dengo e carinho. É brincalhão, como quando, no aniversário da vovó Ana, perguntou: “De quem é o primeiro pedaço de bolo?” E disfarçou, apontando para si mesmo. Mas as fatias de bolo chegaram a tempo para todos... E como aniversário é sempre um assunto muito importante e como as crônicas da vovó são criadas a cada aniversário dos netos, não conseguiu conter a curiosidade e, quatro meses antes, perguntou se eu já estava fazendo a sua. Diante da resposta afirmativa, queria que eu contasse alguma passagem interessante da crônica...

Você continua gostando de chocolate e se alimenta bem. Quando vai almoçar na casa da vovó Janne, o pedido é infalível: “Vovó, faz bolinho de alho-poró?”  Mas tem vários outros pratos preferidos, que ela faz com o maior prazer para você e Tite, incluindo a feijoada light. Telas e tintas não faltam na casa da vovó Janne e do vovô Santi, para vocês exercerem a criatividade estimulados por eles, autores de vários quadros.

Pokémon, games, jogos no computador – como corridas de carros muitas vezes disputadas com Tite – e maquetes e construções – vovô Santi continua muito requisitado nestes dois últimos itens – fazem parte de seu lazer. É capaz de ficar muito tempo assistindo ao programa de TV que, para mim, mais parece um jogo, em que blocos coloridos são sobrepostos para formar casas e prédios.

Certa noite, em que vovó Ana estava com você e Tite em sua casa, esperando os papais chegarem, esse programa de TV servia para distraí-los, mas o sono era grande. Você não resistiu e foi se deitar, mas “com luz forte no abajur, para esperar acordado e dar beijo na mamãe e papai”. Quando vi, estava dormindo, virado para o outro lado. E Tite, outro fã do programa, declarou, já meio dormindo: “Vou esperar por eles na cama.” E, claro, em cinco minutos estava dormindo, em baixo do edredom.

O futebol tem espaço importante em sua vida, João Vitor. Levados pela mamãe, você e seu irmão frequentam, com muita animação, a escola de futebol onde desenvolvem jogadas e aprendem a teoria desse esporte.  No início das aulas, vocês jogavam com tênis. Era época de Páscoa e você não teve dúvidas ao pedir o presente para as vovós: “Prefiro chuteira em vez de ovo de chocolate.” Claro que os dois ganharam chuteiras, e ainda estrearam o presente antes da data. Mas no dia de Páscoa ficaram felizes porque também ganharam chocolate. Outro esporte que encanta você e tem espaço importante em sua vida é o basquete. Você se dedica aos treinos na escola, já no fim do dia, e vai animado, mesmo um pouco cansado das atividades do cotidiano.

Certa vez, indo embora da casa da vovó Ana, na hora do abraço, Tite provocou: “Vovó, você ainda consegue me levantar?” Consegui um pouquinho, reclamei que ele estava ficando pesado, e você, João, veio fazer graça, sabendo que eu não consigo mais levantá-lo: me abraçou pela cintura e disse que ia me levantar. Como tem muita força, precisei me segurar em um móvel para você não conseguir tirar meus pés do chão. Aí o vovô Paulo reclamou: “Cuidado com a vovó! O basquete está fazendo bem para você, João, seus ombros estão fortes, se expandiram.” E você, apesar de meio sem jeito, ficou todo orgulhoso.

Interessante é observar muitas de suas reações, já não tão infantis. Vovó Ana e vovô Paulo estavam no shopping e a mamãe avisou que você ia lá, junto com a turma do bilíngue da escola, para fazer um lanche e treinar o inglês. Era dia de só falar inglês. Esperamos na lanchonete e surpreendemos você quando chegou com os amigos. A primeira coisa que você disse, parecendo gente grande, foi: “Mas o que é que vocês estão fazendo aqui?!”  E só se deu por satisfeito após nossas explicações!

Ao mesmo tempo, tem reações da criança que você ainda é: quando quer alguma coisa não dá sossego. Ultimamente, descobriu o prazer de colecionar moedas antigas. Papai tem várias, mas vovô Paulo tem um saquinho dessas moedas. E, ingenuamente, foi mostrá-las para você, explicando que ia levá-las para o papai e a mamãe, que depois iriam dividi-las entre você e Tite. Vocês estavam passando uns dias na casa do vovô Paulo, e não teve acordo: a todo momento você pedia para ver as moedas. Até que vovô deu algumas para você e seu irmão. Só assim você sossegou um pouco.

Em uma noite de abril, 5 horas da manhã, em sua casa, acordou a mamãe resmungando e choramingando: “Meu dente está pendurado e não consigo puxar!” Depois de se acalmar do susto, mamãe levou você ao banheiro e, com luz clara acesa, conseguiu puxar o pré-molar, deixando um belo espaço na gengiva, além de um pouquinho de sangue. Foi difícil evitar alguns minutos de choro, mas, como você mesmo diz que está na pré-adolescência, logo estava bem e passou a exibir o “buraco” com orgulho.

Suas expressões artísticas são marcantes, tanto na pintura e desenho, como na música. No fim do ano, na apresentação da escola de música, no Teatro Guarany, tocou guitarra muito bem, com uma postura de músico acostumado a grandes plateias. Foi muito aplaudido e fez dueto com o Tite na bateria. Um sucesso!

E na exposição de telas da aula de Artes da escola, no foyer do Teatro Municipal, mais uma vez tinha um ar encabulado e orgulhoso com os muitos elogios recebidos por seus quadros. Muita gente chegou a confundi-los com os dos professores! Você agradecia os cumprimentos com um sorriso, mas logo olhava para papai e mamãe, buscando a aprovação dos dois. Que foi o melhor elogio que você poderia receber.

Aí está, João Vitor, meu amado netinho – ainda posso chamá-lo de netinho? – um pouco de sua vida, seus amores, preferências e atividades. É você já em busca de outros caminhos, mas ainda, e felizmente, mantendo seu profundo vínculo com a infância. Esta vovó Ana continua pedindo a proteção divina para seu caminhar. Que, tenho certeza, será sempre iluminado, tanto nas batalhas como nas vitórias, repleto do amor que guia seu coração!  

 

 

 

 

 

 

 

 

Incêndio na Vila Gilda

 

                    O menino em preto-e-branco

            Publicada em 09/09/2023, na "Tribuna Livre"  do jornal "A Tribuna"


Foi a foto de um amigo, publicada no Instagram, que me escancarou a dimensão da tragédia. E não por mostrar os restos queimados das palafitas, o buraco ainda fumegante, que se adivinhava negro e pegajoso por baixo dos escombros, ou pela sensível escolha do fotógrafo ao produzir a foto em preto-e-branco. O impacto foi mesmo a figura do menino de costas para a câmera, uns 8 ou 9 anos, usando short estampado e uma camiseta onde se lia “Ronaldo”. De pé, parado, olhava para o triste cenário e dava para imaginar o que se passava naquela cabecinha.

         Quantas perguntas sem resposta, a começar por “e agora?” Possivelmente muitas outras se sucediam, como “o que vou comer, vestir, ainda terei escola para ir, onde vou morar com minha família, onde vou conseguir outra bola para jogar com meus amigos?” E talvez a pior: “Será que meu cachorro se salvou?”

         Perguntas simples que aquela criança se fazia, mas que traduziam o profundo sofrimento de inúmeras outros meninos e meninas, e suas famílias, moradores das palafitas da Vila Gilda. Talvez porque a Proteção Divina estivesse atenta naquela madrugada, nenhuma vida humana se perdeu. Mas o grande incêndio matou vários animais de estimação, deixando os corações ainda mais feridos.

         Claro que a generosidade e solidariedade de nosso povo logo começou a se manifestar, em doações de tudo o que precisam aquelas pessoas repentinamente sem teto e sem chão. Sofrimento amenizado! Poderes Públicos em vários níveis se mobilizaram para conseguir abrigo temporário e prometem moradias dignas para os desabrigados (por favor, vamos esquecer o nome “Parque Palafitas”, a lembrança de pessoas morando precária, perigosa e doentiamente em casebres de madeira em cima do mangue é insuportável!).

         E aí voltamos ao menino da foto. Acreditando, com otimismo, que todos os bons projetos se concretizem, ele vai, com o tempo, esquecer esse doloroso dia do incêndio e voltar à sua vida de criança. Continuará sonhando em ser um Ronaldo no futebol. Continuará aprendendo o que os professores conseguirem lhe ensinar e já será um vitorioso se terminar o período escolar sabendo contar, escrever e ler (embora, neste último item, seja provável que não entenda muito bem o que está lendo).

         Que pena, menino! Sua atitude de quietude na contemplação da tragédia revelou emoção e sensibilidade. Qualidades essenciais para se transformar em um adulto íntegro, com clareza para compreender a vida. Mas seria preciso que essa vida lhe desse mais oportunidades. Ou melhor, que os seres humanos que têm o poder de manipular os cordões da existência compreendessem que tudo pelo que lutam – poder, dinheiro, política – não valem absolutamente nada diante da miséria, crime, guerra, doença e retrocesso humano.

         Quando entendermos que progresso sem compaixão é “um tiro no pé”; que Inteligência Artificial é o “futuro da humanidade” mas só se continuarmos valorizando a emoção e a sensibilidade, aí o menino da foto poderá ter melhores oportunidades, progredir sem cancelar o coração e se transformar em um homem que ajudará a construir a história humana.