Para marcar uma data tão significativa como o Natal, aí vai a crônica publicada dia 23/12, no jornal “A Tribuna”, aqui de Santos, na seção “Tribuna Livre”.
Os olhos castanhos de minha mãe
Eram castanhos os olhos de minha mãe. Não um simples, mas um intenso castanho, profundo, luminoso. Eram olhos que, apesar da timidez, olhavam direta e profundamente, deixando transparecer bondade, mas também decisão. Os olhos de minha mãe revelavam sua personalidade, e foi com esses olhos que me encantei logo que comecei a me entender por gente.
Da época de Natal, as primeiras lembranças são vagas, confusas, a não ser por um detalhe: eu adivinhava o clima de felicidade. Preparativos para uma festa, conversas sobre presentes, figuras de presépio, como não criar expectativas em uma criança muito pequena? Cores, muitas luzes, outras crianças, a casa cheia de parentes.
E, naturalmente, sobressaindo, a tradicional figura vermelha, de barbas brancas e com um saco de presentes. Quando o Papai Noel chegou naquela Noite de Natal, eu me agarrava ao colo de meu pai, enquanto procurava minha mãe e meus tios queridos. Vi os tios, mas onde estava minha mãe?
E o Papai Noel se aproximando, em um misto de alegria, mistério e uma pontinha de medo. Ele distribuiu presentes e acariciou outras crianças. Quando chegou bem perto de mim, parecia que, por instantes, o mundo havia parado. Perguntou qualquer coisa com uma voz estranha, que, hoje, eu sei, tentava disfarçar.
Mas, aí, já não havia mais volta. Eu tinha olhado nos olhos do Papai Noel. Eram castanhos, profundos, luminosos, os olhos... de minha mãe. Naquele exato momento, não existia mais Papai Noel. A voz disfarçada logo foi reconhecida. E eu entendi que era minha mãe embaixo das roupas vermelhas, da barba branca, dos gestos estudados.
Fiquei quietinha, não revelei minha descoberta. Decepção por não existir Papai Noel? Nenhuma. Era bom saber que minha mãe estava ali, procurando me alegrar (e também às outras crianças). Era um gesto de carinho. O amor que eu já conhecia de sobra. Amor de mãe travestida de Papai Noel.
Foi esse amor que ela procurou transmitir ao longo de toda a vida. Um amor que se derramava em compreensão, solidariedade, perdão, luta, retidão de caráter. Tudo aquilo que a pequena figura da Criança deitadinha no presépio se propôs a ensinar depois de adulta. A mesma mensagem de paz e bondade. Os mesmos valores que caracterizam homens e mulheres de bem. O mesmo difícil caminho trilhado por todos que compreenderam e seguiram os sinais que conduzem à evolução do gênero humano.
Sim, eu tive vários mestres em minha infância. Meus familiares que me orientaram em direção à estrela do bem. Entre eles, a inesquecível figura materna, em cujos olhos castanhos eu sempre podia ver as emoções e as nuances da vida. Por isso, hoje, esqueço por momentos todo o sofrimento e revolta contra o retrocesso vivenciado por parcela da humanidade.
Em meu mundo utópico, Papai Noel chega carregado de um saco de presentes: não existem mais assassinatos, escravidão e desprezo pelas mulheres, corrupção, crianças famintas, velhos morrendo desamparados. Até os animais são tratado com dignidade. Revejo os valores ensinados pela Criança do presépio. É Natal! E eram de um castanho profundo os olhos de minha mãe!