Nas mãos de Deus?
Recebo um WhattsApp que me faz
sorrir: “Vocês ainda limpam as compras do mercado ou já entregaram pra Deus”?
Claro que é uma brincadeira, destinada a nos fazer rir, mas também capaz de nos
fazer refletir: há quanto tempo estamos – pelo menos, muitos de nós – nesta
rotina de chegar com as sacolas do mercado e nos pormos, furiosamente, a lavar
e passar álcool 70 em tudo? Em alguns casos, nem as sacolinhas escapam da
higienização!
Limpar compras de mercado já era,
antes da pandemia, hábito em muitos lares. Mas, o indesejável vírus deixou tudo
muito mais difícil. Porque, agora, essa limpeza é feita sob tensão, com medo de
deixar de fora alguns milímetros da superfície higienizada, onde, exatamente
ali, possa estar, rindo de nós, às gargalhadas, o vírus maléfico.
E, assim, terminada a tarefa da
limpeza, estamos exaustos, não tanto por causa do trabalho, mas pelo medo de
não termos conseguido fazê-lo perfeito! Essa é apenas uma das consequências do
vírus em nossas vidas. A reclusão forçada, a falta de um passeio, do contato
direto com a arte, com o esporte; o trabalho e a escola prejudicados, a certeza
de que em uma imensurável quantidade de casas não é possível tomar precauções
básicas contra o vírus, tudo se acumula e nos causa desconforto.
Depressão, doenças graves sem acompanhamento
médico e violência doméstica são apenas alguns efeitos da pandemia. Mais que
isso, esse tal de “novo normal” resulta em atitudes descabidas e violentas até
em pessoas pacíficas. Uma amiga conta que foi insultada na fila do caixa do
supermercado por ter percebido, antes dos demais, um outro caixa se abrindo e
ter sido a primeira a ser atendida nesse caixa. E quem gritava, chamando-a de “espertalhona”,
era uma senhora acompanhada do marido!
Leio no jornal que um desentendimento
na fila do caixa, em outro supermercado, resultou em agressão física e
intervenção da polícia, tudo porque um cliente estava supostamente muito perto
do outro, desrespeitando o protocolo de segurança em tempos de pandemia. E fico
sabendo que um famoso ator de novelas, ao ver a praia cheia, no Rio de Janeiro,
com várias pessoas sem usar máscara, despejou sua raiva contra os idosos:
“Tomara que morram mesmo”!
Esse é o poder do vírus: despertar o
pior do ser humano. Mas, paralelamente, também vem despertando o melhor,
traduzido por solidariedade, ajuda material e psicológica, dedicação da área de
saúde, pesquisa, reinvenção de cada um, arte e esporte em lives.
Por isso, não concordo nem com os
mais espiritualizados e otimistas, que esperam um ser humano melhor pós-vírus, nem
com os revoltados, que atribuem à pandemia todas as desgraças atuais da
humanidade. Somos o que somos: alguns, mais anjos, outros, mais demônios. O ser
humano é dual, composto de ambos os aspectos, e compete a cada um optar pela
face que vai predominar.
E até o advento da tão aguardada vacina (quando chegará? Será segura? E eficiente?) teremos que conviver com a pandemia e com a humanidade como a conhecemos. Chorar as mortes e rir das piadas sobre o vírus. Continuar nos preservando, mas vivendo; reclamando das informações conflitantes, mas ávidos por elas. Discordar, mas amar. Esse é o papel reservado ao homem. Com ou sem pandemia. Ou você já entregou tudo pra Deus?!
(Publicado na "Tribuna Livre"
do jornal "A Tribuna", em 18/10/2020)