domingo, 18 de outubro de 2020

Nós e o vírus

 

                                  Nas mãos de Deus?


Recebo um WhattsApp que me faz sorrir: “Vocês ainda limpam as compras do mercado ou já entregaram pra Deus”? Claro que é uma brincadeira, destinada a nos fazer rir, mas também capaz de nos fazer refletir: há quanto tempo estamos – pelo menos, muitos de nós – nesta rotina de chegar com as sacolas do mercado e nos pormos, furiosamente, a lavar e passar álcool 70 em tudo? Em alguns casos, nem as sacolinhas escapam da higienização!

Limpar compras de mercado já era, antes da pandemia, hábito em muitos lares. Mas, o indesejável vírus deixou tudo muito mais difícil. Porque, agora, essa limpeza é feita sob tensão, com medo de deixar de fora alguns milímetros da superfície higienizada, onde, exatamente ali, possa estar, rindo de nós, às gargalhadas, o vírus maléfico.

E, assim, terminada a tarefa da limpeza, estamos exaustos, não tanto por causa do trabalho, mas pelo medo de não termos conseguido fazê-lo perfeito! Essa é apenas uma das consequências do vírus em nossas vidas. A reclusão forçada, a falta de um passeio, do contato direto com a arte, com o esporte; o trabalho e a escola prejudicados, a certeza de que em uma imensurável quantidade de casas não é possível tomar precauções básicas contra o vírus, tudo se acumula e nos causa desconforto.

 Depressão, doenças graves sem acompanhamento médico e violência doméstica são apenas alguns efeitos da pandemia. Mais que isso, esse tal de “novo normal” resulta em atitudes descabidas e violentas até em pessoas pacíficas. Uma amiga conta que foi insultada na fila do caixa do supermercado por ter percebido, antes dos demais, um outro caixa se abrindo e ter sido a primeira a ser atendida nesse caixa. E quem gritava, chamando-a de “espertalhona”, era uma senhora acompanhada do marido!

Leio no jornal que um desentendimento na fila do caixa, em outro supermercado, resultou em agressão física e intervenção da polícia, tudo porque um cliente estava supostamente muito perto do outro, desrespeitando o protocolo de segurança em tempos de pandemia. E fico sabendo que um famoso ator de novelas, ao ver a praia cheia, no Rio de Janeiro, com várias pessoas sem usar máscara, despejou sua raiva contra os idosos: “Tomara que morram mesmo”!

Esse é o poder do vírus: despertar o pior do ser humano. Mas, paralelamente, também vem despertando o melhor, traduzido por solidariedade, ajuda material e psicológica, dedicação da área de saúde, pesquisa, reinvenção de cada um, arte e esporte em lives.

Por isso, não concordo nem com os mais espiritualizados e otimistas, que esperam um ser humano melhor pós-vírus, nem com os revoltados, que atribuem à pandemia todas as desgraças atuais da humanidade. Somos o que somos: alguns, mais anjos, outros, mais demônios. O ser humano é dual, composto de ambos os aspectos, e compete a cada um optar pela face que vai predominar.

E até o advento da tão aguardada vacina (quando chegará? Será segura? E eficiente?)  teremos que conviver com a pandemia e com a humanidade como a conhecemos. Chorar as mortes e rir das piadas sobre o vírus. Continuar nos preservando, mas vivendo; reclamando das informações conflitantes, mas ávidos por elas. Discordar, mas amar. Esse é o papel reservado ao homem. Com ou sem pandemia. Ou você já entregou tudo pra Deus?!  


   (Publicado na "Tribuna Livre"

  do jornal "A Tribuna", em 18/10/2020)