Tristes contos de Natal
Na Inglaterra
vitoriana, a garotinha perambula sozinha pelas ruas mal iluminadas. Suas roupas
remendadas, as perninhas sem meias e os chinelos esburacados dão bem a ideia de
sua triste condição. Pobre, com frio e faminta, ela olha pelo vidro de uma
imensa janela.
Dentro, na mansão iluminada, adultos e crianças se
reúnem à mesa farta. Uma Árvore de Natal brilhante e colorida extasia os olhos
da pequena; presentes envoltos em fitas e papéis coloridos aguardam a meia-noite
para serem abertos. É véspera de Natal, e ela bate à porta da mansão para pedir
comida, mas é enxotada.
Cada vez com mais frio e fome, senta-se
chorando na sarjeta, e adormece. Quando acorda, já não está na rua gelada e
escura, mas em um amplo e iluminado salão, saciada pelas guloseimas que cobrem
imensa mesa decorada, e aquecida pelo amor de sua mãe, que há poucos meses
havia partido para o céu. No dia seguinte, na porta da mansão, descobrem o
corpinho sujo e enregelado.
Ilustrado com grandes desenhos
coloridos, esse conto de Natal, parte de um livro de histórias, nunca mais me
deixou esquecer da garotinha que morre de frio e fome na véspera de Natal.
Mas, hoje, me pergunto: como
esquecer dos milhões de brasileirinhos
abandonados à própria sorte? Crianças que perambulam pelas ruas pedindo um
trocado ou fazendo “malabarismos” para conseguir uma moeda. E as que acompanham
pais ou parentes em sua trágica vida de moradores de rua?
Mais ainda: como esquecer os pequenos
que, sem escola e sem carinho, vão sobrevivendo e aprendendo as cruéis lições
que a rua ensina, não raro se transformando em marginais e drogados? E
os pequenos doentes que morrem sem assistência porque não há lugar para eles na
rede pública de saúde?
Meninas e meninos cujas tristes histórias poderiam
compor
um
infindável livro ilustrado com cenas inacreditáveis. Mas, reais. Lemos esse
livro diariamente nos jornais, ouvimos e assistimos as histórias nos meios de
comunicação.
São
tantas e tão constantes que quase perdemos a capacidade de nos indignarmos. E,
sem indignação, nenhum passo se pode dar para rasgar esse triste livro. Como
aceitamos passivamente que milhões se esvaiam pelos imensos ralos da corrupção,
se há crianças na rua, com fome e com frio?
Como assistimos inertes aos governantes
se digladiando pelo poder, enquanto escolas se deterioram, professores são
desprezados e veículos de transporte escolar apodrecem em galpões oficiais? Por
que não damos um basta à rasteira política partidária, que impede a canalização
de recursos garantidores de uma vida digna às nossas crianças?
Nossos coloridos Presépios e Árvores de
Natal deveriam nos lembrar da mensagem de solidariedade e amor deixada por Aquele cujo nascimento comemoramos. Deveriam
nos estimular a sermos serenos, mas firmes, ao exigirmos conduta correta de
governantes. E a sabermos escolhê-los por sua dignidade, honradez e humanidade.
Ou será que vamos fazer de conta que
não temos nada com isso e esperar que nossos pequenos encontrem a felicidade e
a alegria depois de partirem para junto dos anjos que, com certeza, os
aguardam? Aí, só nos restará recolhermos seus corpos sujos e raquíticos. Que
belo Espírito de Natal!