domingo, 16 de outubro de 2022

Gilberto Mendes

 

              Gilberto Mendes, o homem e o artista

Publicado na seção Tribuna Livre, do jornal A Tribuna, em 16 de outubro de 2022

 

Quem se dispuser a folhear edições antigas de “A Tribuna”, vai entender por que o jornal tem sua história profundamente ligada à cultura de Santos e região. Em suas páginas, desfilam importantes nomes da arte, não só no noticiário, mas como autores de textos e geradores de fatos que agitaram e elevaram o nível cultural em uma época em que arte e cultura faziam jus a essas denominações. O compositor santista Gilberto Mendes foi um desses nomes.

             No último dia 13, foi comemorado seu centenário de nascimento, ocasião propícia para relembrar sua obra, seus feitos nacionais e internacionais, prêmios e vitórias. Mas, também, recordar um pouco o ser humano Gilberto Mendes, sua personalidade gentil, sua luta para ver a música erudita contemporânea mais conhecida e reconhecida.

            Durante muitos anos, Gilberto foi crítico de música e colaborador de “A Tribuna”, tendo ainda escrito para vários outros jornais de circulação nacional. Mas “A Tribuna” era o jornal da Cidade onde havia nascido e que escolheu para morar, mesmo quando se tornou artista internacional e era constantemente convidado, oficialmente, para os mais importantes festivais mundiais de música contemporânea. A ansiedade e expectativa antes da viagem transformavam-se no retorno feliz, quando trazia na memória os aplausos às suas obras interpretadas por grandes músicos, os prêmios, as críticas elogiosas. Era nessas ocasiões que sua chegada à redação se transformava em momentos deliciosos.

            Sem qualquer traço de ostentação, contava detalhes da viagem, dos espetáculos, da felicidade de ser bem recebido e de estar representando a cultura de Santos e do Brasil no exterior. Falava das amizades conquistadas, das características de outros povos. Certo dia, contou que em alguns países europeus, quando se andava na rua e se erguia a cabeça, fazendo contato visual com outra pessoa, obrigatoriamente se cumprimentava o outro transeunte. E, sorrindo, lembrou que não era assim por aqui.

            Apenas em exemplo do poder de observação, da vontade de apreender muito de outros ambientes, outras realidade, detalhes que, certamente, iam fazer parte de sua próxima composição. Depois, de dentro de uma pasta, tirava algumas laudas datilografadas, para serem publicadas, sempre com críticas seguras, mas serenas, ou fatos descritos com fidelidade.

            Idealizador do Festival Música Nova, Gilberto viu sua iniciativa crescer e alcançar outros patamares, chegando a ser realizado simultaneamente em Santos e São Paulo. Mas a luta era árdua. A cada ano, a cada nova edição, ele enfrentava falta de verba, de interesse e até total falta de conhecimento do que se tratava, por parte de autoridades e patrocinadores. Só após algumas críticas a essa situação publicadas em “A Tribuna” e outras mídias, surgia a verba, sempre insuficiente. Até que, em 2011, Gilberto desistiu de Santos, tendo o Música Nova – que em 2012 comemorou 50 anos – sido assumido pelo Departamento de Música da USP, em Ribeirão Preto.

            Realista, ele sabia que a música contemporânea não atingia grandes públicos. Mas entendia sua importância na pesquisa e descoberta de novos caminhos para o som erudito. Era um artista multimidia, que dizia que, se não tivesse sido músico, com certeza seria escritor. Publicou a novela “Danielle em Surdina, Langsam”, com suspense, paixão, citações de artistas e memórias de paisagens e prédios santistas, como o Parque Balneário, que é retratado em um desenho feito pela esposa de Gilberto, Eliane Mendes. Tudo escrito de maneira que a música pode ser sentida ao longo do texto, com seu ritmo e seus tons.

Outro livro, “Música, Cinema do Som”, reuniu seus artigos, muitos publicados em “A Tribuna”. Saborosos e fáceis de entender, alguns marcados por sutil ironia e humor, revelam momentos do cotidiano do autor e compõem um retrato da música local, nacional e internacional durante um período de 45 anos, indo do erudito ao popular – MPB e jazz –, interligados ao cinema e teatro.

Um livro para se conhecer um pouco mais do artista e do homem Gilberto Mendes, que faleceu em 1 de janeiro de 2016, aos 93 anos, deixando seu nome indelevelmente gravado na música internacional. E sua modéstia, coragem, determinação e modo afável de conviver, inesquecíveis em quem o conheceu.