terça-feira, 29 de setembro de 2009

Luiz Hamen

Este artigo foi escrito na noite de 13 de junho deste 2009, horas depois da morte de Luiz Hamen, artista plástico que deixou seu nome em destaque na cultura santista e brasileira.

Na arte, a busca da vida

A mãe era espanhola; o pai, holandês. Ele, santista nascido na Rua Comendador Alfaia Rodrigues, herdou pele e olhos claros e um quê europeu, que o mantinha em busca de novas técnicas com que pudesse expressar a sua arte. E como europeus que enfrentaram mares e lendas para chegar ao Novo Mundo, ele mergulhou profundamente em sua alma para tentar alcançar a plenitude da arte e o sentido maior da existência.

Luiz Hamen sabia que o seu ciclo estava terminando. Nem por isso se aquietou. Nos últimos anos, manteve-se dedicado, como na maior parte de sua vida, à pintura, gravura, escultura, artesanato e aos estudos místicos. Os que com ele conviveram jamais esquecerão o sorriso que iluminava seu rosto enquanto conversava, seu interesse pelas pessoas, sua vontade de apoiar novos talentos.

Os que conheceram sua arte têm certeza de que prêmios conquistados e opiniões elogiosas de críticos consagrados são resultado de inspiração e dedicação. Uma arte que permanecerá.

Luiz Hamen foi mais um santista a aceitar o desafio e se destacar no difícil panorama das artes visuais.

Apesar de ter obras em coleções e galerias de todo o Brasil, poderia ter buscado um maior reconhecimento, o que certamente teria conseguido. Mas era tranquilo demais para gastar energias em combates que considerava inúteis. Em sua casa-atelier, na Praia de Paranapuã, em São Vicente, criou um mundo particular, repleto de esculturas, quadros e objetos com características próprias, muitos deles cheios de simbologia mística.

Ali vivia o ex-funcionário da Companhia Docas de Santos que, na década de 50, passou a se dedicar às artes visuais e nunca mais as abandonou. Naquele recanto integrado à natureza, criava, estudava e tinha paz. Em 2007, chegou a anunciar sua mudança para o Espírito Santo, onde pretendia se integrar a uma comunidade ligada ao xamanismo.

Mas a mudança não se concretizou e Hamen viveu seus últimos anos na região onde nasceu. Aqui, ficaram seu talento, sua criatividade e sua arte. Com ele, foram seu sorriso, sua tranquilidade e sua busca constante. No nome Luiz Hamen, permanece a força disfarçada de suavidade.

Conto

Este conto de minha autoria foi vencedor do Concurso Nacional “Escreva Pela Paz”, promovido pelo Yazigi Internacional-Internexus, 1998. Na ocasião, fiquei muito feliz, principalmente pelo prêmio, que foi uma viagem de 15 dias a Nova Iorque .

Pela fresta da janela

Já não mais ousava falar de sua estranha experiência de vida. Tornara-se cada vez mais isolado, solitário, como se a cada dia se estreitasse um pouco a já reduzida janela interior em que se debruçava para manter contato com o mundo. E, no entanto, como ansiava por esse contato! Chegou a acreditar que para permanecer vivo tinha mais necessidade de gente do que de ar. Mas a janela não passava agora de uma fresta, que o sufocava.

Não fora sempre assim. As lembranças da infância eram alegres, comuns às de um garoto esperto, bem amado pela família financeiramente estável. Boa educação, aliada à natural inteligência, o tinha preparado para a vida. Mas agora reconhecia que o pesadelo era antigo, começara nesse tempo em que a vida deveria resumir-se a risonhas inconsequências.

Enquanto os outros garotos não perdiam filme ou seriado de guerra simplesmente pelo prazer da aventura, ele sempre saía do cinema com a cabeça fervilhando e a alma se debatendo entre sentimentos de tristeza pelos males que as batalhas de mentirinha faziam desfilar na tela e de revolta contra o mundo – que gerava o terrível monstro – e contra si próprio – incapaz de degolar o monstro ou sequer arranhá-lo.

Bem que tentara falar com o pai, o padre, a professora e os colegas mais chegados. Mas ninguém o levara muito a sério. Por falta de tempo ou de interesse naquele garoto chato, sempre com um único assunto, cada um lhe dava uma resposta evasiva ou malcriada: ‘‘A vida é assim mesmo’’, ‘‘Guerra existe desde que o mundo é mundo’’ e ‘‘Vê se não enche’’, eram as mais comuns.

Mas ele não se conformava nem entendia a guerra. Vivia cercado de paz, porém não esquecia a luta. Como não encontrava ninguém para falar, passou a pensar. Fechava-se na própria concha, como dizia sua preocupada mãe. Tornou-se a cada dia mais introvertido, não tanto que o impedisse de estudar – principalmente ler e pesquisar a história das guerras – e se formar.

Entre a formatura e o início da vida profissional e adulta, passara um período quase normal, voltado para os temas prosaicos das pessoas comuns. Graças aos bons conhecimentos do pai e à sua própria capacidade, conseguira lugar de redator em um grande jornal, onde sua estrela começara a brilhar. Não fora difícil encontrar, apaixonar-se e casar-se com a bela jovem de longos cabelos negros, dando início à estável relação de toda uma vida. Mas, mesmo nesses tempos de calmaria, o assunto não lhe saía da cabeça.

Sabia tudo sobre as guerras que devastavam o mundo. Cada luta, cada grito de dor, a destruição, os mortos, os feridos, as viúvas, os órfãos. Sua produção profissional e suas incursões literárias eram brilhantes quando o tema era guerra. Tanto que chamou a atenção de colegas e chefes. Elogiado, estimulado, foi-se aprofundando cada vez mais, até tornar-se um “arquivo ambulante” sobre o assunto, como brincavam os jornalistas.

Foi quando os problemas realmente começaram. A pessoa afável, quase tímida que era, passou a dar lugar a um profissional fechado, voltado apenas para si e suas preocupações. Respostas duras substituíram atitudes normalmente gentis e poucos ousavam dirigir-lhe a palavra, temendo interromper suas pesquisas e pensamentos. Também em casa o ambiente transformava-se.

A morena de longos cabelos, que lhe dera dois filhos saudáveis e que era feliz em uma casa confortável ao lado do marido inteligente e famoso, já não sorria com facilidade. Procurava conformar-se com a idéia de que a profissão exigia dedicação completa do companheiro, mas logo teve que abandonar esse pensamento ao qual se agarrava como salvação: ele estava cada vez mais distante e agressivo, nem pai nem amante. Era um homem em guerra permanente contra o mundo.

Esquecido de si, da família, dos amigos e da realidade, mergulhara inteiramente nos horrores das guerras, na revolta contra a demência dos homens que as manipulam e na sua impotência para impedi-las. Era capaz de adivinhar sentimentos, pensamentos e emoções de soldados, comandantes e vítimas de todas as guerras do mundo, desde os primeiros homens pré-históricos que se matavam em nome da sobrevivência.

Conhecia motivos e desculpas de todas as lutas. Descobrira interesses inconfessáveis por trás das batalhas e tornara-se cada vez mais contundente em suas críticas. Como correspondente de guerra, sentira na própria pele os horrores dos tiros, das bombas e das explosões, vira mutilação, morte e degradação do ser humano. Por sua experiência e conhecimento da violência, fora destacado para as grandes reportagens sobre marginalidade e violência urbana, suas terríveis causas e consequências.

Não poderia mais lembrar-se de todos os prêmios e reconhecimento ao seu trabalho, tantos haviam sido ao longo da carreira. Alcançara seu objetivo de denunciar a violência, fora capaz de arranhar o monstro, mas não conhecera a sua própria paz. Sentado à mesa de trabalho, redigia indignado artigo enumerando todos os motivos pelos quais a humanidade se oprime e se mata: cobiça, poder, miséria, riqueza, ódio, paixão e até crença religiosa. Encontrou uma frase de efeito para o encerramento – ‘‘O homem mata até em nome de Deus!’’ – e gostou.

Não sorriu, porque há muito não sabia fazê-lo. E também porque não sentia mais o prazer do grito contra a violência ou mesmo do trabalho bem feito. Só o vazio, o isolamento, a sensação da própria vida desperdiçada. Nada mudara. Havia guerras e havia violência.

Sentia agora uma incontrolável necessidade de falar com os colegas, de ter amigos, de passar a mão nos negros cabelos da mulher, de ouvir e entender o que os filhos lhe queriam contar. Mas chegara a um ponto de onde era impossível retroceder. Pela fresta da janela passava agora somente um filete de luz.

Olhou à volta e viu-se, como sempre, isolado em meio à redação. Havia um respeitoso espaço entre ele e os outros, da maneira como gostava, para evitar ser perturbado em seu trabalho. Alguns o observavam furtivamente, entre admirados e temerosos de suas irascíveis reações. Aliás, sentia que não ia demorar para acontecer. Sua vontade era levantar-se e gritar por socorro, pedir que falassem com ele, lhe estendessem a mão, o ouvissem. Mas sabia que não conseguiria. Ao invés disso, ia fazer qualquer mal-humorada e hostil observação sobre a humanidade e “quem não tem mais nada o que fazer a não ser ficar olhando para os outros”.

Chegou a levantar-se, mas parou fascinado pelo sorriso de uma jovem colega que dele se aproximava com naturalidade. Não havia medo nem ironia em seu rosto cordial. Incrédulo, constatou que o sorriso era mesmo dirigido a ele e foi logo completado por frases diretas: “Tenho que lhe dizer como acho seu trabalho importante. Com seu estilo de denúncia, é mais eficaz do que cem comitês de paz juntos”.

A moça seguiu seu caminho, não sem antes lhe dar um novo sorriso, que ele, quando percebeu, já havia retribuído. Olhou para os espantados rostos à volta e sentiu que podia ampliar o sorriso até chegar a um comovente, simples e sincero “Até amanhã!”. Não sabia bem por quê, mas quando pegou o casaco de cima da mesa e encaminhou-se para o elevador, parecia ter de volta sua própria vida. Por pouco não ensaiou um assobio.

Já na rua, contra todos os seus hábitos, teve tempo suficiente para uma longa caminhada sob o tímido sol de primavera. Na banca de jornais, em destaque, seu mais recente trabalho, junto com a notícia de que seria debatido em reunião de governantes dispostos a evitar mais uma guerra. Sorriu novamente e percebeu como era fácil fazê-lo. Apressou o passo, querendo encurtar o tempo para chegar em casa. Ia passar a mão nos longos cabelos da mulher. Já não eram tão negros, teria que soltar os pentes que há muito os prendiam, mas sabia que seria tão bom quanto antes. Nem percebeu quando pombas brancas voaram em direção às árvores, buscando abrigo para passar a noite.

Clara Becker

Fui ver o show desta intérprete excelente, realizado aqui em Santos, no Teatro Municipal, dia 22/09/09. Aqui, o que achei:

Clara, “mais maior de bom”

Um show como raras vezes se pode ver. Foi assim o espetáculo de Clara Becker no Teatro Municipal, parte do projeto cultural itinerante do Banco do Brasil. Clara é dessas intérpretes que colocam a alma no que cantam, entregando-se de tal forma à música que é impossível desviar os olhos de sua figura. Ela tanto pode assumir a dramaticidade como a brejeirice, o ritmo ou a languidez das composições. Dificilmente um compositor encontrará melhor tradução.

A voz grave, a expressão corporal e a total sintonia com seus músicos são sob medida para a homenagem que Clara presta a dois grandes nomes da música brasileira, compositores de temas e estilos diferentes, pai e filho unidos, no entanto, pela expressão da alma brasileira: Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, e Gonzaguinha.

O cenário e a iluminação que não deixam vazios no palco, a competência dos músicos Pedro Macedo no contrabaixo, Kiko Horta no acordeom – instrumento que não poderia faltar quando se toca o Rei do Baião e, aqui, perfeitamente entrosado com a harmonia do conjunto –, Edson Ghilardi na percussão e, especialmente, João Cristal no piano completam os acertos de Dois Maior de Grande. Uma linda homenagem que Clara presta a Gonzagão e Gonzaguinha, com arranjos e direção musical assinados pelo pianista Leandro Braga.

O título do espetáculo – e do CD no qual se baseia – remete à composição de Gonzaguinha Coisa Mais Maior de Grande, e no roteiro do show a cantora opta por mostrar um repertório não tão conhecido do grande público, mas repleto de inspiração e sentimento. Sem faltarem, é claro, sucessos como Asa Branca, Assum Preto e Estrada de Canindé. O resultado é um clima intimista, que, aliás, encontrou no Teatro Municipal o ambiente perfeito.

Pequena jóia entre os shows de música popular, Dois Maior de Grande valeu o suor de sua intérprete e foi uma oportunidade única para o público da região conhecer melhor Clara Becker, que provou saber dosar música e teatro. Cantora, sim, mas também atriz – e das boas –, não fosse ela filha de Cacilda Becker e Walmor Chagas.

sábado, 12 de setembro de 2009

Políticos

De vez em quando, é bom externar um pouco de nossa indignação...

Respeito, sem sapatadas

Recebi e-mail agressivo: se você encontrar algum político, dizia, vire o rosto, mude de calçada e cuspa no chão. Só faltou sugerir que atirasse um sapato no objeto de meu desprezo, à maneira do que fez o jornalista iraquiano contra Bush. Opa! “Meu” desprezo, não. Desprezo de quem redigiu, produziu e repassou o e-mail. Alguém profundamente desiludido e revoltado contra políticos de todas as esferas e matizes.

Após a primeira leitura, achei a mensagem inútil e de mau gosto. Violenta, até. Afinal, não se pode colocar todos os políticos no mesmo saco, não se pode condenar sem provas etc. etc. etc... Meu velho otimismo já se insinuava, certo de que triunfaria, quando uma notícia na TV me chamou a atenção: novo escândalo financeiro explodia envolvendo legisladores.

Foi impossível deixar de considerar todas as acusações e comprovações de corrupção nas várias áreas do Poder, ignorar a lama cada dia mais caudalosa serpenteando entre elas. Voltei a ler o e-mail antipolíticos, perdido entre conselhos sobre a melhor forma de encarar a vida, a velhice, sugestões de autoajuda, anjinhos da fortuna, correntes e mil outras mensagens inúteis.

Comecei a achar que o sujeito que queria cuspir no chão quando avistasse algum político, até que tinha alguma razão. Revi imagens de gente miserável tornada ainda mais miserável pela fúria da natureza, sem contar com nenhuma ajuda dos governantes. Crianças em arremedos de escolas; pais sem perspectivas chafurdando em álcool e drogas; mal pagos professores, médicos, policiais e outros profissionais indispensáveis à dignidade de um povo.

Pensei na cara-de-pau, na vida boa dos políticos e em sua habilidade mágica de desviar as sagradas verbas destinadas a melhorar estradas, financiar pesquisas científicas, salvar vidas, ajudar todas as camadas da população. Passei a considerar seriamente os sapatos, ainda que simbólicos, que todos deveríamos atirar em direção aos políticos. E em formas criativas de exigir deles respeito, no mínimo.

Um resto de bom senso (ou de otimismo?) me advertiu: há, sim, entre políticos de todas as áreas, gente digna, honesta, que trabalha bem. Em vez de sapatos e cusparadas no chão, deveríamos aplaudi-los e reelegê-los. Difícil, mesmo, especialmente quando atuam longe de nossas cidades, é identificá-los!