Os “Jesuses” da Arte e da
Vida
Quando a Arte bateu à porta da Vida, foi recebida com alguma desconfiança. Levava gravador e parecia um pouco deprimida. Mas, com sua facilidade de conquistar admiradores, logo o ambiente se descontraiu e a conversa fluiu como entre duas velhas amigas. A Vida queria saber como a Arte resistia a tantos golpes que tentavam fazê-la pequena e insignificante.
A Arte
perguntava como a Vida resistia a tanto sofrimento, tanto empecilho à sua
continuidade. Como era época de Natal, o assunto acabou dominando a conversa e
logo a Arte preparou seu gravador para entrevistar a Vida. Foi bastante franca
ao informar que seu objetivo era se inspirar na Vida para criar temas fortes,
que atraíssem mentes comprometidas com o mundo mágico que ela era capaz de
criar.
O Natal, por
exemplo, fértil em dramas e também em histórias de solidariedade e amor, era um
ótimo tema para a Arte. Foi a Vida que lembrou o início de tudo, há mais de
dois mil anos, com o nascimento de um Menino, segundo os livros sagrados, em um
ambiente pobre, mas protegido pelo amor de seus pais. No meio de uma sofrida viagem
obrigatória para um recenseamento, Ele nasceu em um estábulo, foi envolto em
panos por sua mãe e acabou adorado por pastores e reis magos, avisados do
nascimento de Alguém especial por anjos resplandecentes.
A Arte logo
viu ali um belo tema para trabalho, e se pôs a imaginar o quanto poderia produzir.
Pinturas e desenhos reproduzindo a história, contos e romances nela inspirados
e uma infinidade de outras expressões de que poderia se valer. Mas, também
pensou em quantos temas tristes poderia criar a partir dali.
A Vida não
se fez de rogada e passou a contar histórias de crianças mal amadas, torturadas
e mortas por pais e responsáveis, que deveriam protegê-las e amá-las. De
recém-nascidos gerados por acaso e contra a vontade de suas mães, descartados
no lixo por elas. De pequenos famintos amontoados em barracos e dos mais
abastados, ignorados pelos pais preocupados com suas próprias vidas.
A Arte se
emocionou, lembrando-se de quanto já havia criado inspirada nessa realidade. E
perguntou à Vida: “O que o mundo está fazendo com esses pequenos Jesuses?
Por que seus pais não os amam e protegem, como os pais do Jesus dos livros
sagrados”? Depois, ponderou que só por esse episódio, lembrado pela Vida, já
tinha valido a pena a visita e a entrevista. Agora, tinha a certeza de que a
Vida era mesmo sua maior inspiração, capaz de torná-la mais forte e atraente.
Mas se
surpreendeu com o sorriso da Vida: “Você ainda não percebeu quantas vezes é
você que me inspira? Quando você conta uma história triste de miséria e
sofrimento, amenizada pela ação bondosa de alguém, quantas pessoas você inspira
a imitar esse gesto, saindo em socorro dos mais necessitados? E quando você
cria uma cena de heroísmo, quantos heróis da vida real, alguns anônimos, têm
gestos admiráveis para ajudar e defender”?
A Arte
olhava, pensativa, o belo anjo esculpido em cores suaves, que se sobressaía no
presépio que decorava a casa da Vida. Pensou nos anjos que teriam anunciado a
chegada do pequeno Jesus. Percebeu que ela e a Vida compartilhavam dor e
alegria. Sorriu e finalmente entendeu que elas mutuamente se imitavam!