sábado, 3 de fevereiro de 2024

Carnaval 2024

 Publicada na Tribuna Livre de A Tribuna em 03/02/2024


                 Cabrocha mentirosa

 

  “Mas chegou o Carnaval. E ela não desfilou”. Na bonita canção de Benito di Paula “Retalhos de Cetim”, o personagem é um sambista, que confessa ter chorado na avenida, decepcionado com a cabrocha que tanto amava e que o havia enganado. Tinha sido um ano inteiro sonhando, preparando-se para o desfile da escola de samba onde brilharia a mulher que havia jurado desfilar para ele. Mas ela não apareceu. Uma mentirosa!

Felizmente, ele desabafa em um samba e não vai atrás da cabrocha para se vingar. Nem facada nem tiro. Nenhum feminicídio. O som dos surdos e tamborins abafa seu lamento e as luzes e cores, aliadas ao brilho das fantasias de cetim, transformam a avenida em um espetáculo magnífico, aplaudido pelas arquibancadas e, via tecnologia, por todo o País e por muitos cantos do Planeta.

Assim é a vida. Há o som dos bumbos e surdos e há o som das bombas caindo sobre populações inocentes em guerras intermináveis e injustificáveis, ainda que os senhores da guerra tentem justificá-las. Há crianças desfilando na avenida, em ricas fantasias e com todas as restrições e cuidados devidos à sua faixa etária, e há os meninos em roupas cinzas como eles, tentando se infiltrar na área do desfile para poder ver um pouco daquele deslumbramento e sonhar com uma vida colorida, menos miserável.

Há as belíssimas mulheres sambando no asfalto ou nos carros alegóricos, exibindo corpos perfeitos, resultado de altos investimentos na indústria de cosméticos, e há as mulheres da limpeza, em seus uniformes de gari, garantindo a subsistência de suas famílias, mas nem por isso deixando de se divertir e sambar no ritmo das escolas.

Há os policiais, bombeiros, médicos e enfermeiros em seu árduo trabalho de garantir a ordem e defender a saúde e a vida humanas, e há os que assaltam, roubam, matam e estupram sem jamais se preocuparem com a desgraça e o sofrimento que causam.

Assim é a vida! É feita de extremos, de paradoxos, de alegrias, euforia e, também, de profunda tristeza, decepção e desistência. Reflexo do ser humano, transitando entre o bem e o mal. Poderia ser diferente se houvesse um olhar mais suave para o outro. Se o que muitos chamam de espiritualidade, outros de caráter, prevalecesse.

 O rol de maldades é infindável; o materialismo e o imediatismo predominam e o individualismo não deixa espaço à solidariedade e ao socorro. O sofrimento causado por gestores do bem público corruptos e incapazes é, muitas vezes, fatal. Os ilusionistas do viver estimulam o vazio, gerando seguidores fanáticos, sem raciocínio, resultando em uma população sem cultura, presa fácil dos falsos “experts”. Assim é a vida! Que poderia ser melhor se pensássemos mais e nos pavoneássemos menos.

Mas chegou o Carnaval! Tempo pouco propício à reflexão porque o que predomina é a fantasia. Física ou psicológica. É tempo de esquecer as mazelas e se divertir. É tempo de rir e não de chorar, como o sambista de “Retalhos de Cetim”. Quem sabe a cabrocha não foi desfilar preocupada em deixar os filhos na casa ameaçada pela enxurrada, já que as obras que deveriam contê-la foram paralisadas pelos gestores públicos. Quem sabe ela também chorou por não poder ir para a avenida e por decepcionar o sambista, seu grande amor!      

   

  

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