O menino em preto-e-branco
Publicada em 09/09/2023, na "Tribuna Livre" do jornal "A Tribuna"
Foi
a foto de um amigo, publicada no Instagram, que me escancarou a dimensão da
tragédia. E não por mostrar os restos queimados das palafitas, o buraco ainda
fumegante, que se adivinhava negro e pegajoso por baixo dos escombros, ou pela
sensível escolha do fotógrafo ao produzir a foto em preto-e-branco. O impacto
foi mesmo a figura do menino de costas para a câmera, uns 8 ou 9 anos, usando
short estampado e uma camiseta onde se lia “Ronaldo”. De pé, parado, olhava
para o triste cenário e dava para imaginar o que se passava naquela cabecinha.
Quantas perguntas sem resposta, a começar por “e agora?”
Possivelmente muitas outras se sucediam, como “o que vou comer, vestir, ainda
terei escola para ir, onde vou morar com minha família, onde vou conseguir
outra bola para jogar com meus amigos?” E talvez a pior: “Será que meu cachorro
se salvou?”
Perguntas simples que aquela criança se fazia, mas que traduziam
o profundo sofrimento de inúmeras outros meninos e meninas, e suas famílias,
moradores das palafitas da Vila Gilda. Talvez porque a Proteção Divina
estivesse atenta naquela madrugada, nenhuma vida humana se perdeu. Mas o grande
incêndio matou vários animais de estimação, deixando os corações ainda mais
feridos.
Claro que a generosidade e solidariedade de nosso povo logo
começou a se manifestar, em doações de tudo o que precisam aquelas pessoas
repentinamente sem teto e sem chão. Sofrimento amenizado! Poderes Públicos em
vários níveis se mobilizaram para conseguir abrigo temporário e prometem
moradias dignas para os desabrigados (por favor, vamos esquecer o nome “Parque
Palafitas”, a lembrança de pessoas morando precária, perigosa e doentiamente em
casebres de madeira em cima do mangue é insuportável!).
E aí voltamos ao menino da foto. Acreditando, com otimismo,
que todos os bons projetos se concretizem, ele vai, com o tempo, esquecer esse
doloroso dia do incêndio e voltar à sua vida de criança. Continuará sonhando em
ser um Ronaldo no futebol. Continuará aprendendo o que os professores
conseguirem lhe ensinar e já será um vitorioso se terminar o período escolar
sabendo contar, escrever e ler (embora, neste último item, seja provável que
não entenda muito bem o que está lendo).
Que pena, menino! Sua atitude de quietude na contemplação da
tragédia revelou emoção e sensibilidade. Qualidades essenciais para se
transformar em um adulto íntegro, com clareza para compreender a vida. Mas
seria preciso que essa vida lhe desse mais oportunidades. Ou melhor, que os
seres humanos que têm o poder de manipular os cordões da existência
compreendessem que tudo pelo que lutam – poder, dinheiro, política – não valem
absolutamente nada diante da miséria, crime, guerra, doença e retrocesso
humano.
Quando entendermos que progresso sem compaixão é “um tiro no
pé”; que Inteligência Artificial é o “futuro da humanidade” mas só se
continuarmos valorizando a emoção e a sensibilidade, aí o menino da foto poderá
ter melhores oportunidades, progredir sem cancelar o coração e se transformar
em um homem que ajudará a construir a história humana.
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