domingo, 10 de setembro de 2023

Incêndio na Vila Gilda

 

                    O menino em preto-e-branco

            Publicada em 09/09/2023, na "Tribuna Livre"  do jornal "A Tribuna"


Foi a foto de um amigo, publicada no Instagram, que me escancarou a dimensão da tragédia. E não por mostrar os restos queimados das palafitas, o buraco ainda fumegante, que se adivinhava negro e pegajoso por baixo dos escombros, ou pela sensível escolha do fotógrafo ao produzir a foto em preto-e-branco. O impacto foi mesmo a figura do menino de costas para a câmera, uns 8 ou 9 anos, usando short estampado e uma camiseta onde se lia “Ronaldo”. De pé, parado, olhava para o triste cenário e dava para imaginar o que se passava naquela cabecinha.

         Quantas perguntas sem resposta, a começar por “e agora?” Possivelmente muitas outras se sucediam, como “o que vou comer, vestir, ainda terei escola para ir, onde vou morar com minha família, onde vou conseguir outra bola para jogar com meus amigos?” E talvez a pior: “Será que meu cachorro se salvou?”

         Perguntas simples que aquela criança se fazia, mas que traduziam o profundo sofrimento de inúmeras outros meninos e meninas, e suas famílias, moradores das palafitas da Vila Gilda. Talvez porque a Proteção Divina estivesse atenta naquela madrugada, nenhuma vida humana se perdeu. Mas o grande incêndio matou vários animais de estimação, deixando os corações ainda mais feridos.

         Claro que a generosidade e solidariedade de nosso povo logo começou a se manifestar, em doações de tudo o que precisam aquelas pessoas repentinamente sem teto e sem chão. Sofrimento amenizado! Poderes Públicos em vários níveis se mobilizaram para conseguir abrigo temporário e prometem moradias dignas para os desabrigados (por favor, vamos esquecer o nome “Parque Palafitas”, a lembrança de pessoas morando precária, perigosa e doentiamente em casebres de madeira em cima do mangue é insuportável!).

         E aí voltamos ao menino da foto. Acreditando, com otimismo, que todos os bons projetos se concretizem, ele vai, com o tempo, esquecer esse doloroso dia do incêndio e voltar à sua vida de criança. Continuará sonhando em ser um Ronaldo no futebol. Continuará aprendendo o que os professores conseguirem lhe ensinar e já será um vitorioso se terminar o período escolar sabendo contar, escrever e ler (embora, neste último item, seja provável que não entenda muito bem o que está lendo).

         Que pena, menino! Sua atitude de quietude na contemplação da tragédia revelou emoção e sensibilidade. Qualidades essenciais para se transformar em um adulto íntegro, com clareza para compreender a vida. Mas seria preciso que essa vida lhe desse mais oportunidades. Ou melhor, que os seres humanos que têm o poder de manipular os cordões da existência compreendessem que tudo pelo que lutam – poder, dinheiro, política – não valem absolutamente nada diante da miséria, crime, guerra, doença e retrocesso humano.

         Quando entendermos que progresso sem compaixão é “um tiro no pé”; que Inteligência Artificial é o “futuro da humanidade” mas só se continuarmos valorizando a emoção e a sensibilidade, aí o menino da foto poderá ter melhores oportunidades, progredir sem cancelar o coração e se transformar em um homem que ajudará a construir a história humana.

        

          

Nenhum comentário:

Postar um comentário