O exemplo de Arlequim
Publicada na seção Tribuna Livre, do jornal A Tribuna, em 10/02/2023
"Arlequim está chorando pelo amor da Colombina...” Ou estaria louco de ciúmes e se sentindo “dono” da Colombina, arquitetando um plano para matá-la, e Pierrô junto? Não há, hoje, espaço para as sátiras que alimentavam a Commedia dell´Arte, o gênero teatral que a Itália popularizou no século 16 e que se contrapunha à Commedia Erudita, com origem na literatura e pouco compreendida pelo povo.
Os três
personagens-símbolo do Carnaval e a história de seu triângulo amoroso eram
apresentados com enorme sucesso em ruas e praças da então pequena Veneza e de
várias outras cidades italianas. Com sua sátira aos costumes, trama amorosa e
brincadeiras, eram o próprio espírito do Carnaval, e, assim como suas máscaras
e coloridos figurinos, sobreviveram até hoje.
As tragédias
sempre existiram, a violência também, idem o desprezo à mulher. Não se diga que
não aconteciam na época das sátiras de rua! Mas era nas peças da Commedia
dell´Arte (até hoje um gênero muito valorizado no meio teatral) que os
recalques entre classes sociais, raivas, mágoas e muitos outros sentimentos
inconfessáveis eram transformados em risos e arte, aliviando a tensão.
Infelizmente,
hoje não temos mais comédias de rua para rirmos de nossos políticos, dos nossos
próprios sentimentos, da nossa sociedade. Não há mais, atuando nas praças,
atores na pele de Pantaleão, o patrão rico e avarento; do Doutor, o intelectual
esnobe, ou do Capitão, covarde que se passa por valente.
No entanto,
todos os conhecemos na atualidade. Basta olharmos para o lado para localizá-los
ou vermos o noticiário para identificá-los. Fazem parte das nossas mazelas, da
nossa revolta. E não temos mais como rir em praça pública! E vão surgindo, a
cada dia, novos “personagens”. Na política, os que nem fazem questão de
esconder seus objetivos de poder e riqueza; nas tragédias dos desastres
naturais, os que deveriam agir e nada fazem, e ainda buscam lucrar com a
situação, além de colocarem interesses políticos acima do desespero das vítimas.
E nas
relações sociais, interpessoais e familiares, os violentos, gananciosos,
fracassados e egoístas, que não sabem rir de si mesmos. Assassinam, sequestram,
roubam, chantageiam. Para muitos, uma maneira de resolver problemas, impondo-se
pela força. São os “donos” do outro (principalmente da outra). É o ódio latente
em nossa sociedade!
Que pena que
Arlequim, Pierrô e Colombina só voltam à moda no Carnaval! O embate entre o
amor platônico de Pierrô e a paixão de Arlequim disputando o amor da bela Colombina
é resolvido com leveza: Colombina parte com o sedutor Arlequim e ambos
enfrentam uma vida com dificuldades. Colombina descobre, então, as cartas de
amor que Pierrô secretamente lhe dedicava e, comovida, decide deixar Arlequim,
indo viver, feliz, com Pierrô. Sem, no entanto, perder a esperança de voltar a
ver Arlequim no próximo Carnaval.
Não,
Arlequim não tentou matar Colombina e Pierrô! Partiu para outra. Atitude
exemplar, que deveria inspirar muita gente. Embora triste, foi viver a vida. E
até hoje, onde ainda há festas de Carnaval, ele é lembrado na icônica
marchinha: chora pelo amor de Colombina no meio da alegria de “mais de mil
palhaços no salão”!
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