Um conto bem a propósito da data. Inspirei-me em histórias de pessoas que têm medo de palhaços. Medo estranho, sem dúvida, mas cada um tem direito de ter o medo que quiser. Ou de que não pode se livrar. Divirtam-se!
Bendita coulrofobia!
A chuva lhe escorria pelo rosto, não mais forte do que as grossas lágrimas que teimavam em misturar-se às gotas d´água. Não conseguia evitar a íntima ironia: água doce do céu carrancudo somada à água salgada de um coração ainda mais sombrio. Na verdade, ainda não atinava com o motivo de estar ali, sentada naquela arquibancada, onde todos pareciam explodir de felicidade.
A chuva pesada não impedia que aqueles milhares de rostos se iluminassem e sorrissem a cada colorida fantasia, a cada bela mulher seminua, a cada samba bem marcado. Passistas, baterias, carros alegóricos capazes de fazer inveja, por sua beleza e riqueza, ao Rei de Sião. Seria lindo – e sempre fora, ao longo dos anos – se, naquela noite, ela não se sentisse tão insignificante quanto serpentinas molhadas e pisoteadas pela multidão.
Colados a seu corpo e suas roupas, confetes que já haviam tido cores brilhantes formavam agora uma espécie de massa disforme e sem cor. Olhou para os lados, viu as amigas de toda a vida pulando, cantando, batucando, azarando. Vez ou outra tentavam fazê-la reagir, o que a deixava ainda mais magoada. Ou raivosa, já nem sabia distinguir seus sentimentos.
O samba era cada vez mais ritmado, e ela fazia um balanço de sua vida. Desempregada, sem apoio de pai e mãe, sem irmãos, de mudança para um quartinho de favor e abandonada por seu grande amor. Para coroar o desfile de desgraças, fortemente gripada, com febra, a caminho de uma pneumonia.
O que fazia, então, na arquibancada do desfile? Por que não ouvira a razão e ficara em casa, remoendo a tristeza? As amigas, sim, a haviam influenciado, quase intimado a ir. Ou seria uma espécie de tradição, daquelas impossíveis de quebrar? Como tinham sido bons todos aqueles anos! Ao lado da grande paixão, trocando carícias e beijos e sendo zoados pelo grupo. Podiam se considerar, com os namorados, maridos e filhos das amigas, uma grande família.
E como era bom assistir aos desfiles, cantar bem alto, dançar, gritar, torcer pelos prediletos! Aquilo era alegria em sua melhor expressão. A essência da felicidade. Ela não contava com o reverso. Que veio avassalador, uma espécie de bola de neve arrasando tudo em seu caminho. A separação e mudança dos pais, a dispensa do emprego estável da firma em dificuldades financeiras.
Sem dinheiro, sem parentes na cidade grande, só lhe restaram o grande amor e as amigas. Foram estas que a socorreram quando teve que deixar o apartamento por não poder pagar o aluguel. Arrumaram o pequeno quarto na casa de uma avó, onde ela deu graças aos céus por não ter que ir para a rua. E tinha a grande paixão, a força que, apesar de tudo, a sustentava.
Com carícias e promessas de ficarem juntos, superando todas as dificuldades, ela conseguia dormir feliz, enquanto, durante o dia, aceitava pequenos trabalhos e buscava com garra um novo emprego. Carnaval se aproximando, ela economizando para assistir ao desfile junto com os amigos e o grande amor. Até que, bem antes da Quarta-Feira, a grande paixão virou Cinzas.
Falta de sintonia, relação desgastada e uma série de desculpas das quais ela nem queria se lembrar. E ele partiu, sem um carinho, um beijo de despedida, sem nem olhar para trás. Para ela, mundo desabado. Reagir à tristeza, não podia. E nem queria. Soube depois, por proposital indiscrição dos amigos, que ele não curtia mulher sem emprego e sem dinheiro.
Por que, então, estava ali? O pensamento recorrente na cabeça que estalava de dor, não a deixava raciocinar. Teve que fazer esforço para entender o que uma das amigas lhe dizia ao ouvido: alguém estava muito intrigado com a tristeza dela, gostaria de lhe falar, se aproximar, ver alegria naqueles olhos molhados. Ela gostaria?
Em meio a um acesso de tosse e já quase sem forças para decidir qualquer coisa, concordou com um aceno de cabeça. A amiga sorriu e apontou para o outro lado. Ali, bem pertinho de seu rosto, com os olhos brilhando de excitação, estava... um enorme palhaço.
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Ela acordou no hospital, o barulho das baterias substituído por um silêncio quase absoluto. Enxuta, quentinha embaixo das cobertas, sem pensar, sem sofrer. Paz tomando conta de seu corpo e mente. A seu lado, um homem ainda jovem, com ar de preocupação:
– Que bom você acordou! Como se sente?
– Muito bem! O que houve? Você é médico?
– Não, apenas alguém que se preocupa com você. Me desculpe, eu jamais poderia imaginar que você sofresse de coulrofobia.
– ?????????
– É, medo de palhaço.
– Medo de palhaço, eu sempre tive, nunca fui a circos, nunca pude tocar em bonecos vestidos de palhaços. Chama-se coulrofobia? Mas o que tem isso a ver com este lugar, parece um hospital...
Só então a cena voltou à sua mente, o palhaço sorrindo, se aproximando dela na arquibancada, os olhos faiscando, a alegria no ar...
Deu um grito, quase desmaiou novamente. Recuperou-se, raciocinou e, só então, conseguiu perguntar bem baixinho:
– Você era o palhaço?
Diante da afirmativa dele, com a cabeça, ela conseguiu sorrir. E diante da pressa dele, de dizer que nunca mais se fantasiaria de palhaço, o sorriso ficou mais largo. Carnaval tem tudo a ver com palhaço. Mas, se ele não fazia questão da fantasia, quem sabe os próximos Carnavais não poderiam ser muito melhores? Com a tal de coulrofobia, mas também com muito confete, serpentina e samba no pé.
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