quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Boas Festas!

 Publicada em 19/12/2024 na Tribuna Livre, jornal A Tribuna


                   Feliz Natal ou Feliz Ano Novo?

                                                            

  O homem solitário vestiu a fantasia de Papai Noel e se sentiu bem. Havia relutado muito em aceitar o convite – quase imposição – dos amigos de quem se aproximava apenas na época de Natal. Não havia conseguido se desvencilhar do convite, em parte por sua barba onde já predominavam os fios brancos e por sua figura, digamos, avantajada, como gostava de se referir a si.

           Mas continuava um solitário. Sem família, sem amigos, na rotina casa-trabalho. Vez ou outra ia caminhar ou assistir ao futebol de várzea. Cumprimentava um ou outro conhecido, mas não permitia a aproximação. Apenas no Natal, talvez ainda sob a influência dos Natais de sua meninice, juntava-se ao grupo que, tradicionalmente, procurava oferecer uma Noite – um pouco mais – Feliz às crianças do bairro da periferia.

          Não eram pessoas de posses, mas trabalhadores que se sentiam privilegiados por ter casa e emprego para sustentar suas famílias. Ele não tinha família e, por isso, podia ajudar um pouco mais. Mas, este ano, haviam extrapolado: pedir para ele ser o Papai Noel... Francamente!

          No entanto, lá estava ele, vestido de Papai Noel e sorrindo ao lado de crianças para algumas câmeras de celulares, enquanto distribuía presentes simples e doces, não só para os pequenos, mas também para suas famílias, todos contagiados pelo tão exaltado espírito de Natal. E ele se sentindo bem, recebendo e retribuindo votos de Feliz Natal para todos.

           Quase não se reconhecia, estava praticamente se entregando à alegria da época e à convivência com a comunidade, quando avistou, no meio dos rostos ansiosos das crianças, aquele menino que já havia visto pedindo ajuda, perambulando pelo bairro. Vivia nas ruas, era magro e alto para a idade – calculou uns 12 anos – vestia shorts e camiseta desbotados, mas, surpreendentemente, estava sempre limpo.

         Estendeu a mão para a criança e lhe fez a clássica pergunta: “O que você quer pedir para o Papai Noel”? A resposta não foi “uma bola”, mas um surpreendente “um Feliz Ano Novo”. Admirado, retrucou: “Mas hoje é dia de dizer Feliz Natal”. E o garoto: “Sim, é Natal e é feliz porque lembra do Menino do Presépio. Mas prefiro Feliz Ano Novo”! E saiu correndo, perdendo-se entre as pessoas.

          O “Papai Noel” cumpriu seu papel pelo restante da noite. Era hora de voltar para casa. E para sua solidão. Incomodado com aquele diálogo, decidiu abordar o menino na rua, quando o encontrasse. Descobriu seu nome, confirmou que havia se desencontrado da família e era solitário, como ele. Naquela casa vizinha da igreja, matava a fome, tomava banho e às vezes ganhava roupas. Lá, ouvira falar da mensagem de solidariedade deixada pelo Menino do Presépio. Sonhava que isso pudesse mudar logo sua vida, de preferência, no próximo Feliz Ano Novo.

            O homem solitário não conseguiu esconder as lágrimas. Sabia que a partir dali não mais seria solitário. Que sua vida teria um novo sentido, buscando a realização do sonho do menino. Que o Feliz Natal estaria para sempre entrelaçado ao Feliz Ano Novo. Para ele, para o menino e para todos que entendessem a solidariedade ensinada pelo Presépio.

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

João Vitor - 13 anos

 

      O aviãozinho na prateleira

 

Dia desses você chegou em casa e junto com o “oi, vovó!”, veio me abraçar. Eu também o abracei e beijei, mas, no meio do abraço, me dei conta de que eu estava quase na ponta dos pés para alcançar seu rosto. E imediatamente me lembrei das tantas vezes em que me abaixei para ficar da sua altura e abraçá-lo e beijá-lo e acarinhá-lo, como as avós fazem. Você já não é mais o meu netinho gracioso e pequenino. É agora meu neto, um bonito pré-adolescente que continua carinhoso com a vovó, mas que, de pé, em minha cozinha, me passa a sensação de ocupar um espaço maior do que aquele a que eu estava acostumada.

Você cresceu, João Vitor. Está completando 13 anos e a vida o desafia a saber vivê-la com coragem e inteligência, qualidades que você demonstra ter junto com alguns gostos e atitudes que ainda lembram seu lado infantil. Afinal, são só 13 anos! E eu entro no escritório de casa e vejo, em cima da prateleira, coberto com um plástico transparente, o aviãozinho de brinquedo que, há muitos anos, eu resgatei do lixo reciclável de sua casa, onde tinha ido parar porque estava quebrado. Naquele dia, eu só enxergava seus olhinhos cheios de lágrimas. Estava difícil se separar do brinquedo querido!

Então eu recolhi os pedaços intactos do aviãozinho, trouxe para casa, fabriquei com material doméstico as peças que faltavam e aguardei. Na sua visita seguinte à casa dos vovós Ana e Paulo, coloquei o avião no meio dos seus brinquedos e nunca vou esquecer a sua expressão de espanto e alegria quando o viu. Por isso o aviãozinho ocupa lugar de honra na estante!!!

 Mas tudo isso não foi ontem mesmo?! Como pode aquela criança sensível, que se alegrava e inventava histórias com seus brinquedos e carrinhos, ser hoje o moço que está lá na minha cozinha, conversando, mas também fazendo graça ao tocar a campainha estridente só para ouvir as reclamações da família? Claro que pode! É a vida que segue seu curso. É tempo de se admirar com o crescimento dos netos – vovô Paulo não se cansa de dizer que você está mudado, mais tranquilo e adulto – e aproveitar o que eles ainda conservam de meninice. Assim é você, João, aos 13 anos, e assim é seu irmão Luiz Felipe, o nosso Tite, que, por ser mais novinho, deixa transparecer mais seu lado criança.  

A sua convivência com ele é a da maioria dos irmãos, que vivem implicando um com o outro e se abraçando e combinando artes – sim, você ainda gosta de aprontar –, mas agora o Tite já não recolhe as suas coisas que você vai esquecendo pela casa, como ele fazia antes. Agora, ele cresceu e também vai deixando objetos pela casa, que a mamãe faz os dois recolherem e guardarem, não sem antes dar uma bronca em ambos.

Mamãe distribui carinho, mas continua sendo a guardiã dos estudos, orientando e cobrando atenção às leituras de livros, lições de casa, preparação para provas etc. Papai procura estar presente sempre que a atividade profissional lhe permite, e você e seu irmão reclamam quando sabem que ele não vai poder estar em casa. Mas ele já é seu companheiro de passeios que você adora, como quando foram juntos a Interlagos e você ficou empolgado com o autódromo, o ambiente, o público e, principalmente, os carros e pilotos. E é claro que você torceu pelo Carlos Sainz, seu piloto predileto!

Você, como a mamãe, gosta muito de viajar. E anda se saindo muito bem como o cineasta da família, filmando e editando algumas dessas viagens, principalmente quando vai de carro e pode usar o celular para registrar paisagens e acontecimentos. Só não deu para fazer vídeo no passeio de barco, nas Cataratas do Iguaçu: era muita água, o barco se aproximando das quedas espetaculares e você não se conteve: “Meu Deus!”

Na região de Cancún, você e família curtiram as belíssimas praias e paisagens e não perderam nem o furacão que chegou adiantado ao Caribe. Tudo registrado em muitas fotos e vídeos, inclusive do dia em que ficaram no hotel protegidos dos ventos. Mas você gostou mesmo do passeio às ruínas de Chichen Itzá, com a pirâmide construída muitos anos antes de Cristo, pelos maias, sem qualquer acesso à tecnologia. Você registrou tudo no grupo de WhatsApp da família e contou toda a história daquela época, inclusive com detalhes que apreendeu do guia turístico e da professora de História, que havia lhe mostrado muita coisa a respeito, antes da viagem.

Esse seu interesse pela História antiga demonstra como você está amadurecendo. Vejo em você o jovem que já não usa fantasia no Carnaval, preferindo camisa estampada, bermudas e tênis, e o menino que, no resort em que comemoramos, em abril, o aniversário do Tite, fez meu anel voar para dentro da sobremesa na hora do jantar. Eu havia comentado que você está crescido, um pré-adolescente, e que já não tinha mais gracinhas para colocar na crônica de aniversário. Pois não é que, sentado ao meu lado na mesa, curioso como é, me fez tirar um anel para examiná-lo em sua mão?! Começou a brincar com ele e, em um descuido, o anel, em voo rasante, foi parar dentro da sobremesa. Sem jeito, você tratou de tirá-lo logo de lá e não teve outra alternativa a não ser limpá-lo direitinho e comentar com ar de resignação seguido de uma boa risada: “Já sei que essa vai para a crônica!”

No hotel, encontrou na vovó Janne uma ótima parceira de ping pong. Mas ela joga bem e, quando ganhava a partida, sabendo que você não gosta de perder, pedia desculpas!...  Hoje, você já joga muito bem tênis de mesa – gosta tanto que até vive fazendo jogadas imaginárias com as mãos, totalmente encantado com o novo esporte – e vovó Janne já não se desculpa por ganhar de você.

Mas onde você mais se divertiu no hotel foi no escorregador da piscina. Em momentos carinhosos, fazia um pouco de companhia aos vovós Ana e Paulo, que ficavam mais sentados à beira d´água. Vinha, deixava seu lado moleque aflorar cutucando e sendo cutucado pelo vovô Paulo – que não perde seu jeito brincalhão – e conversava durante algum tempo. Um dia trouxe uma pedrinha, que pediu para a vovó guardar. Mas acabou indo para o escorregador e se esqueceu da pedra em cima da mesinha da piscina. Quando a vovó perguntou o que era para fazer com ela, pediu: “Guarda para mim e leva pra Santos. Depois eu pego com você.” E pegou mesmo!

No retorno do hotel, mais um momento de carinho: ainda era o dia do aniversário do Tite e você fez questão de arrumar a mesa para o jantar com muito capricho. Depois fez seu irmão entrar de olhos fechados e só abrir na sala. Uma surpresa que o Tite adorou!

Você é assim, meu querido João. Continua firme no basquete, esporte com que se identificou. E quando, durante um almoço em família, alguém comentou que você consegue acertar facilmente as argolas nas barraquinhas de festa junina, a resposta veio rápida, aparentando indiferença, mas cheia de orgulho: “Claro, eu jogo basquete!”

Com tanta atividade física, alimenta-se bem, mas o chocolate continua entre suas paixões: quando vem almoçar na casa da vovó Ana, espera acabar o almoço para ir buscar um bombom na caixa que – como o Tite – sabe muito bem onde está.

Assim, João Vitor, você cresce, dividido entre o menino e o pré-adolescente. No lançamento do livro Vida, do vovô Titi – é assim que você e seu irmão chamam o vovô Santi até hoje – ele lhe pediu para criar o convite online para a noite de autógrafos. Ficou muito bonito e depois virou um banner muito elogiado. Era o jovem responsável caprichando no que lhe haviam pedido.

Mas a criança está presente quando recorda uma brincadeira em que o papai, ao volante do carro, saía bem devagarzinho e o vovô Santi, do lado de fora, gritava “para o carro, motorista”, só para o papai brecar e você e Tite, pequeninos, se divertirem e pedirem: “De novo, de novo!”. Pois não é que há pouco tempo, todos vocês repetiram a cena e você e seu irmão não paravam de rir e pedir “de novo, de novo!” ?!... 

 É nessa convivência de retidão, amor e compreensão da vida, ensinados por mamãe e papai, que você e seu irmão crescem. E nós, os quatro vovós, procuramos aproveitar todos os momentos de convivência com vocês. Agora, quando você chega aos 13 anos, esta vovó Ana só deseja que você continue o garotão carinhoso e alegre, querido por familiares e amigos. E que você tenha sempre a Proteção Maior para lidar com a vida, superando os inevitáveis obstáculos com trabalho e coragem e aproveitando com sabedoria todas as maravilhas que estão por vir.  

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Luiz Felipe - 10 anos

 

                 Vovó “apanha” no videogame

 

Fui fazer companhia para você, em sua casa, enquanto a mamãe saía com o João. Você, com aquela carinha de sapeca, anuncia solenemente: “Vou jogar videogame!” E logo acrescenta: “Vem, vovó!” E eu, ingenuamente, achando que ia só ficar vendo você jogar, concordo. Acomodada em uma cadeira ao seu lado, me admiro com a facilidade com que você manuseia o equipamento do jogo e consegue “dirigir” carros, acumulando pontos e “vidas”. Até que você, muito sério, me passa a outra “direção” e determina: “Vamos ver quem vence a corrida. Escolhe um carro, vovó.” Levo um susto, mas decido encarar o desafio. Só para levar uma “lavada” de você, me atrapalhando toda – mesmo com as suas pacientes explicações – e perdendo vergonhosamente.

            Esse é você, Luiz Felipe, meu lindo e irrequieto netinho, que chega aos 10 anos com fôlego total e personalidade decidida, encantado com o lado bom da vida e não se deixando abater quando chegam as dificuldades. É o nosso Tite, que adora brincar com o irmão João Vitor ou com os muitos amigos, mas também gosta de se divertir sozinho com seus Legos, seus lápis de desenho e tintas de pintura. É você, ainda o “grudezinho” da mamãe e o amigão do papai. É você, o grande amor (ao lado do João, claro!) dos vovós Ana, Paulo, Janne e Santiago.            

            E é você, com seu rostinho de sapeca, fazendo sinal com as mãozinhas por trás da mamãe enquanto ela avisava os vovós – preocupada em proteger a sua saúde e a do João – para não comprarem chocolate para a Páscoa. Mas você fazia gestos pedindo um chocolate pequeno, com aquela expressão que conhecemos bem, o que torna o pedido impossível de não ser atendido...

            O futebol continua sendo bem importante e você vai todo feliz para as aulas, não só porque vai jogar, mas porque vai encontrar os amigos e se divertir muito. A música é outra atividade de que gosta, e você continua arrasando na bateria. No fim do ano, no concerto de encerramento da escola de música, papai foi o “convidado especial” e tocou com você e João. Sucesso total, com a plateia aplaudindo de pé e você com uma expressão de pura felicidade!

            Continua gostando, às vezes, de se afastar e se divertir sozinho com desenho e jogos no tablet (Minecraft está em alta atualmente e você gosta de assistir ao rap do Minecraft na TV). Mas também sabe movimentar um ambiente, com suas risadas e brincadeiras com o João Vitor. Esperto e decidido, anuncia o que vai fazer e já se põe em ação, como quando, em um dia que fui passar em sua casa, você anunciou que ia me mostrar como fazer para abrir as torneiras do box, e já saiu correndo na minha frente para dar uma demonstração “ao vivo”. E quando eu precisava fechar um saquinho de batatas fritas, foi logo buscar um pregador de roupas e explicou: “A mamãe às vezes me dá um destes.”

            Foi assim também há um ano, na comemoração do seu aniversário. Não parou um minuto nas brincadeiras com os amigos da turma da escola, e na hora de comer bolo – de chocolate, claro! – quis repetir: “Eu sou o aniversariante, tenho direito!” Mas, quando almoça na casa da vovó Ana, não gosta de encontrar cebola na comida: “Tira esses fiapos do prato!”

            De manhã cedinho, vovó Ana fazendo ovo mexido para você e seu irmão comerem no café da manhã, antes de irem para a escola. Você passa por trás de mim, confere a frigideira, eu pergunto se está certo e você faz um sinal positivo. Estou aprovada em ovos mexidos!

            Já passear e viajar é com você mesmo. Chegou todo feliz, anunciando em casa que a escola ia levar para um acampamento de três dias. E já emendou: “Eu vou, viu?” E foi mesmo, divertiu-se muito, mas sentiu falta da mamãe, principalmente na hora de dormir. E como o irmão também estava no acampamento, o João foi “convocado” para ficar mais com você, tarefa que desempenhou muito bem, permitindo que ambos se divertissem a valer, em todos os brinquedos e atividades.

            Em Foz do Iguaçu, ficou empolgado com a natureza e as cataratas. E demonstrando bem sua personalidade divertida, gritava no passeio de barco com mamãe, papai e João, em baixo da queda d´água: “Molha mais! Molha mais!” É essa mesma personalidade divertida que transparece em conversas com a família. Em casa da vovó Ana e vovô Paulo, me pede: “Imita a pomba, vovó!” Só para dar risada do fato de eu reclamar muito dos pombos e passarinhos que não saem da área descoberta do apartamento.

            Vovô Paulo perguntou: “Você sabe o que é macaxeira?” E a resposta veio na hora: “Sei. É um abacaxi que cheira muito!”... Na rua, passando por um prédio torto, comentou: “Eu não moraria nele!” Quando ouviu a explicação de que os engenheiros já garantiram que não tem perigo, veio uma “aula”: “Sério? Porque as fundações dele devem estar muito ruins. Muita areia.” E logo explicou, todo orgulhoso, que tinha aprendido na escola.

            Assim você cresce, Luiz Felipe. O nosso Tite que ainda gosta de brincar de supermercado quando vai na casa dos vovós Janne e Santiago. Que a cada dia aperfeiçoa seu desenho tendo como modelos animais e objetos que escolhe na web. Que ainda curte fantasia de Carnaval – este ano fez sucesso na escola com a fantasia de Sonic – e que continua com a criatividade em alta.

            Nestes dez anos de convivência, nós assistimos à sua personalidade ir sendo moldada, acompanhamos seu progresso nos estudos, enfim, fomos testemunhas de seu crescimento. Seus vovós e papais torcem muito por você e desejam que sua vida siga sempre um caminho iluminado, onde os inevitáveis obstáculos sejam transpostos com luta e determinação e onde as muitas vitórias sejam sempre recebidas com alegria. Quanto a esta vovó Ana, só posso desejar, como sempre, que você conte com a Proteção Superior para vencer e continuar espalhando alegria pelas estradas que trilhar!    

 

           

 

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quinta-feira, 14 de março de 2024

Armando Sendin

 Publicada em 14/03/2024 , na Tribuna Livre do jornal A Tribuna 

  

            Um tesouro em exposição


 Foi na época em que Santos fervilhava na área cultural, com festivais de teatro, grupos musicais e compositores eruditos e populares, literatura acadêmica e moderna, apresentações de concertistas e atores, shows de cantores e humoristas, todos nomes de destaque local, nacional e até internacional. Era arte de nível, em muitos casos, de ótimo nível. Valores locais e de fora movimentavam a área cultural e projetavam Santos no Brasil e exterior.

As artes visuais não ficavam fora dessa valorização cultural, com exposições coletivas e individuais se sucedendo, exibindo trabalhos das mais diversas tendências, influenciados por várias vertentes, do tradicionalismo ao modernismo, cubismo e dadaísmo, entre outras, mas, principalmente, pelo modernismo “brasileiro”, construído a partir da Semana de 22.

Foi nesse período de agitação cultural, décadas de 60 a 90, que o jovem Armando Sendin, professor, escultor, gravador e ceramista, já então um nome de projeção internacional, escolheu Santos para morar com sua esposa Sita, também artista plástica. A partir daqui, seu trabalho, que já havia ganhado o mundo, percorreu todo o Brasil e os mais diversos países, em mostras individuais e em prestigiados salões internacionais, conquistando os mais importantes prêmios.

São óleos, que incluem figuras em atividades do dia a dia ou no lazer, permeadas por leveza e transparência, em uma harmonia de cores que impressiona. E o mar, a grande inspiração, está muito presente, ajudando a compor um trabalho único, invariavelmente bem aceito pelo público e aplaudido pela crítica. Seu realismo não exclui o impressionismo, transformando sua produção em obra bastante pessoal.

Sua forte ligação com Santos fez com que escolhesse a Cidade para abrigar parte de seu acervo e assim, na noite de 7 de outubro de 2014, com a Pinacoteca Benedicto Calixto transbordando de amigos e admiradores, ele oficializou a doação à instituição de 127 quadros e 51 cerâmicas – outra técnica que dominava como poucos.

Pois é parte desse precioso acervo que poderá ser conhecida ou revista pelo público no Espaço Armando Sendin, nova ala especialmente criada na Pinacoteca para exposição permanente das obras do artista. Uma iniciativa inteligente da Fundação Pinacoteca Benedicto Calixto, que “abre o cofre” para expor um tesouro à visitação de santistas e turistas.

É mais uma homenagem ao artista que manteve sua ligação com Santos mesmo após mudar-se para Marbella, na Espanha, onde faleceu em 29 de julho de 2020, aos 92 anos, deixando obras expostas nas mais importantes coleções e em museus brasileiros e no exterior, em países como Espanha e Estados Unidos.

E é também uma homenagem à pessoa de Armando Sendin, homem simples, cavalheiro e cordial, que ajudou a projetar Santos nas artes plásticas internacionais. Lembrança de um tempo em que a arte santista alcançou um de seus mais altos níveis e produção cultural que muitas vezes se igualou às metrópoles!    

  

   

 

sábado, 3 de fevereiro de 2024

Carnaval 2024

 Publicada na Tribuna Livre de A Tribuna em 03/02/2024


                 Cabrocha mentirosa

 

  “Mas chegou o Carnaval. E ela não desfilou”. Na bonita canção de Benito di Paula “Retalhos de Cetim”, o personagem é um sambista, que confessa ter chorado na avenida, decepcionado com a cabrocha que tanto amava e que o havia enganado. Tinha sido um ano inteiro sonhando, preparando-se para o desfile da escola de samba onde brilharia a mulher que havia jurado desfilar para ele. Mas ela não apareceu. Uma mentirosa!

Felizmente, ele desabafa em um samba e não vai atrás da cabrocha para se vingar. Nem facada nem tiro. Nenhum feminicídio. O som dos surdos e tamborins abafa seu lamento e as luzes e cores, aliadas ao brilho das fantasias de cetim, transformam a avenida em um espetáculo magnífico, aplaudido pelas arquibancadas e, via tecnologia, por todo o País e por muitos cantos do Planeta.

Assim é a vida. Há o som dos bumbos e surdos e há o som das bombas caindo sobre populações inocentes em guerras intermináveis e injustificáveis, ainda que os senhores da guerra tentem justificá-las. Há crianças desfilando na avenida, em ricas fantasias e com todas as restrições e cuidados devidos à sua faixa etária, e há os meninos em roupas cinzas como eles, tentando se infiltrar na área do desfile para poder ver um pouco daquele deslumbramento e sonhar com uma vida colorida, menos miserável.

Há as belíssimas mulheres sambando no asfalto ou nos carros alegóricos, exibindo corpos perfeitos, resultado de altos investimentos na indústria de cosméticos, e há as mulheres da limpeza, em seus uniformes de gari, garantindo a subsistência de suas famílias, mas nem por isso deixando de se divertir e sambar no ritmo das escolas.

Há os policiais, bombeiros, médicos e enfermeiros em seu árduo trabalho de garantir a ordem e defender a saúde e a vida humanas, e há os que assaltam, roubam, matam e estupram sem jamais se preocuparem com a desgraça e o sofrimento que causam.

Assim é a vida! É feita de extremos, de paradoxos, de alegrias, euforia e, também, de profunda tristeza, decepção e desistência. Reflexo do ser humano, transitando entre o bem e o mal. Poderia ser diferente se houvesse um olhar mais suave para o outro. Se o que muitos chamam de espiritualidade, outros de caráter, prevalecesse.

 O rol de maldades é infindável; o materialismo e o imediatismo predominam e o individualismo não deixa espaço à solidariedade e ao socorro. O sofrimento causado por gestores do bem público corruptos e incapazes é, muitas vezes, fatal. Os ilusionistas do viver estimulam o vazio, gerando seguidores fanáticos, sem raciocínio, resultando em uma população sem cultura, presa fácil dos falsos “experts”. Assim é a vida! Que poderia ser melhor se pensássemos mais e nos pavoneássemos menos.

Mas chegou o Carnaval! Tempo pouco propício à reflexão porque o que predomina é a fantasia. Física ou psicológica. É tempo de esquecer as mazelas e se divertir. É tempo de rir e não de chorar, como o sambista de “Retalhos de Cetim”. Quem sabe a cabrocha não foi desfilar preocupada em deixar os filhos na casa ameaçada pela enxurrada, já que as obras que deveriam contê-la foram paralisadas pelos gestores públicos. Quem sabe ela também chorou por não poder ir para a avenida e por decepcionar o sambista, seu grande amor!